DOS RESÍDUOS: in dúbio pro Ambiente
Sumário
I.
Invasão Ténica ou
Técnica Invasiva?
II.
Direito do
Ambiente. Direito ao Ambiente
III.
Bem Jurídico
Ambiente
IV.
Conceito de
resíduo (natureza jurídica)
V.
O Lixo é de quem
o produz, mas os resíduos são nossos
VI.
Princípios
Fundamentais do Direito dos Resíduos
VII.
Gestão de Resíduos
VIII Em especial, o caso da co-onceneração
Sérgio Santos
Aluno 18411
Se a reflexão histórica detecta
coerências e permite encontrar um sentido para o mundo em que vivemos,
relativizando o presente, a análise prospectiva dá conta da incerteza da
evolução e consciencializa o desconhecimento dos múltiplos amanhãs, ao mesmo
tempo que igualmente contribui para relativizar o presente[1]
I.
Invasão Técnica
ou Técnica Invasiva?
Apesar de
não conviverem de forma são, o Direito e a Ciência devem formar uma
imprescindível aliança entre a busca da verdade e a procura da justiça social.
A busca e a construção do justo não se podem bastar, em especial na prossecução
da protecção do ambiente e da sustentabilidade da sociedade humana, de um saber
que ainda que aprofundado se foca nas relações desenvolvidas entre indivíduos.
Na verdade, hoje mais que nunca, assumem nesta matéria um importantíssimo
destaque as tecnologias decalcadas do mundo das Ciências naturais e
experimentais na decisão política. Esta última não deve dissociar a vontade
humana de uma decisão de cariz técnico, já que é o saber (teórico e pericial)
que deve sempre e necessariamente presidir à escolha, sob pena de esta assumir
as vestes de um mero arbítrio. Certo é, ainda assim que tanto o direito como a
ciência devem estar conscientes da natureza circunscrita do seu saber, bem como
da impossibilidade de abarcar todos os fenómenos resultantes das relações entre
Homem e Homem e Homem e natureza.
Vivemos numa sociedade em constante mutação, com
especial destaque para as diversas inovações tecnológicas e novas descobertas
no mundo da técnica, parecendo que estas últimas são o fundamento de todas as
decisões, como observa Tiago Antunes[2].
A técnica invadiu todos os domínios da vida humana, desde as empresas, à
Administração, passando mesmo pelas relações entre cidadãos. Segundo Vasco
Pereira da Silva, “outra manifestação do recuo da administração autoritária é a
que decorre da tecnicização da actividade administrativa. A utilização de meios
técnicos por parte da Administração pública constitui um fenómeno importante e
em plena expansão, sendo cada vez mais fequentes os sectores regulados, por
natureza, por normas técnicas”[3].
Como não podia deixar de ser, o Direito não está imune a este fenómeno,
verificando-se um cresecente imiscuir da técnica e seus saberes especializados
nas normas jurídicas. Naturalmente que esta aproximação que temos vindo a
frisar entre a Ciência
(técnica) e o Direito é
naturalmente mais visível em determinados ramos do Direito, com especial
destaque para o Direito do Ambiente. Este último tem a particularidade de na
sua “previsão” e construção apelar a conhecimentos de cariz extra-jurídico.
Baluarte desta realidade será, nomeadamente, o regime das MTD (Melhores Técnicas
Disponíveis).
O advento do risco de causar lesões de carácter
irreversível no Ambiente (situações em que não se afigura como possível tornar
a situação indemne), obriga a Administração a
antecipar o momento preventivo e a lançar mão de instrumentos de composição do
acto administrativo genericamente estranhos ao Direito, como são cláusulas de
cariz eminentemente físico e técnico.[4]
Regras sobre a qualidade das águas, licenciamento industrial, controlo
integrado da poluição, leis do ruído, entre outras, têm um indiscutível cunho
técnico. As “tricas” que historicamente existem, como oportunamente referimos
em momento anterior, entre o Direito e a Ciência começam lentamente a
desvanecer e a converterem-se numa progressivamente mais saudável aliança. Na
verdade, O Direito do Ambiente é certamente o domínio onde o Direito mais
assume uma papel diplomático neste mesmo sentido, por várias ordens de razões:
em primeiro lugar, trata-se de uma matéria pouco trabalhada. Urge deste modo
que os juristas se adaptem á invasão da técnica, problematizando e estudando o
fenómeno de mãos dadas com esta. Em segundo lugar, tratando-se de uma tónica
fulcral do Direito do Ambiente, é natural que seja a Doutrina jus-ambientalista
a debruçar-se sobre o efeito da Técnica no Direito, aprofundando as suas
causas, a sua evolução e acima de tudo estudando as ondas que esta poderá fazer
repercutir nos cânones instalados no mundo jurídico. Em último lugar, o
entendimento tradicional da discricionariedade técnica em Direito
Administrativo colheria óbvios benefícios em acompanhar de perto as inovações
técnicas.
II.
Direito do Ambiente. Direito ao Ambiente
O amor à natureza, a simbiótica convivência com
esta e mesmo a depêndencia desta é um facto transversal à existência humana,
datando dos primórdios da humanidade. Precisamente por isto, é perfeitamente
defensável que a preocupação com a protecção da Natureza não é necessariamente
um fenómeno tão recente quanto possa o leitor julgar. No entanto, esta
preocupação só muito recentemente adquiriu uma dimensão colectiva,
transformando-se num ónus da comunidade e mesmo num desconforto perante a
degradação crescente do ambiente, o desaparecimento dos recursos naturais e,
especialmente, a ameaça que paira sobre o futuro da Terra, da sua flora e
fauna. Assim, a consciência social obriga a que, nos dias de hoje, exista não
só um Direito ao Ambiente, como um Direito do Ambiente.
O Direito do Ambiente nasce numa altura de grande
turbulência internacional, considerando o fim dos regimes autoritários na
Europa de Leste, a reunificação alemã,
a Guerra do Golfo, entre
outros. Uma série de acontecimentos que para além do seu cariz histórico
marcaram o último terço do século vinte pois tiveram o condão de redesenhar os
horizontes geopolíticos, forçando a novos passos que precisaram de ser dados no
tocante às relações internacionais. Esta convulsão política e social forçou o
Homem a re-avaliar em certa medida a sua ideia de sociedade, interdependência e
relação com o Ambiente[5].
A própria economia teve forçosamente que se
consciencializar que uma política de desenvolviemento deve necessariamente
assumir um modelo sustentável, não podendo deixar de somar os factores em
causa, de onde não se podem deixar de destacar as facturas que se forçou a
Natureza a assumir. Só um bom conheciemento das interacções entre a economia e
a natureza (ponderando nomeadamente limites colocados à produção ou extracção)
e o meio ambiente pode garantir um desenvolvimento sustentável e uma economia
devidamente alicerçada.
O núcleo do Direito do Ambiente, e onde se expressa
a sua “intervenção ecológica”, divide-se entre garantir direitos subjectivos
das pessoas relativamente ao meio-ambiente, como a tutela objectiva de bens
ambientais, como bem observa Vasco Pereira da Silva[6].
Ainda segundo o mesmo autor, a subjectivação da defesa do ambiente (no sentido
de indivudualização da titulariedade dos direitos subjectivos), através da
consagração de Direito fundamental ao ambiente será o melhor caminho na senda
de uma protecção adequada do ambiente, numa lógica de protecção de agressões
provindas quer de entidades públicas, quer de entidades privadas, na esfera
individual constitucionalmente protegida.
Julgamos ser de elevada utilidade que, antes de nos
centramos no cerne deste estudo, se faça uma abordagem às especificidades do
Direito do Ambiente, munindo assim o leitor das ferramentas conceptuais
necessárias à melhor compreensão do seu alcance. Deste modo, e sob pena de
descurar alguns ramos específicos do Direito do Ambiente, diga-se que este se
configura como um Direito (Administrativo) de cariz público. Nas palavras de
Carla Amado Gomes, o Direito do Ambiente “ enquanto
de Direito estabelece os modelos de aproveitamento dos bens ambientais
naturais, prevenindo lesões graves, regulando as formas de reparação de danos
significativos, reprimindo os infractores e incentivando todos os cidadãos e
empresas a adoptar condutas ambientalmente amigas”.
III.
Bem Jurídico “Ambiente”
A compreensão do âmbito do Direito do Ambiente, e
das fundações a partir das quais este se erige importa que se defina o quid que sob a sua alçada se coloca.
Saber o que se vai tutelar, e como, depende de uma opção ideológica que reside
em saber se o que se pretende é salvaguardar a Natureza, enquanto bem para o
Homem, ou
enquanto bem em si mesma. Nascem desta
dicotomia as concepções antopocentricas e ecocentricas. A concepção
antropocêntrica parte da convicção de que os bens naturais são fontes de
utilidade para a vida humana, afectos à satisfacção e ao bem estar do Homem.
Pelo contrário, a concepção ecocêntrica tende a acentuar a natureza elle meme, merecedora de tutela
independentemente da sua capacidade para satisfazer necessidades antrópicas, já
que os bens e recursos naturais gozam de uma dignidade própria e autónoma.
O legislador português optou, ao que tudo indica, e
partindo da letra do 5º/2/a) da LBA (Lei de Bases do Ambiente) por uma
concepção ampla. Assim sendo, coloca de forma paritária as águas, a flora, a
fauna, a atmosfera. Toma-se o ambiente como uma realidade constituída pelo
conjunto de recursos naturais e pela interacção destes com a actuação humana.
IV Conceito de resíduo (Natureza jurídica)
Como nota Gomes Canotilho, “o jurista de ambiente
deve confessar a sua humildade e reconhecer que sem o amparo de outros ramos do
Direito não é possível edificar um corpus teórico suficientemente autónomo para
abarcar todas as multidimensionalidades dos problemas ambientais”[7].
Numa perspectiva dogmática, avançar com o regime
consagrado pelo legislador português e mesmo europeu aos resíduos, sem tratar
da sua natureza jurídica, do objecto sobre o qual este regime incide, equivale
a amputar uma parte significativa da sua disciplina. Apoiamo-nos numa concepção
Neo-Kantiana do Direito que demonstra sem lugar a reservas que o Direito nem
sempre molda o seu conteúdo em função de uma relação jurídica. Existe uma
miríade de realidades que devem ser (e são) reguladas pelo Direito mas cuja
origem não provém de uma facutalidade relacional. O conceito de situação
jurídica, invocado a este propósito, demonstra-se bem mais compreensivo e
tecnicamente mais ajustado.
Pela sua natureza, julgamos estar em condições de
afirmar que o lixo, ainda que possa, como julgamos já ter tido oportunidade de
demonstrar, assumir diferentes formas, quantidades ou origens é uma porção
delimitada da realidade. Enquadra-se, tudo o indica, no conceito Jurídico que
coisa: tem existência objectiva e não faz parte da pessoa humana, sendo
exterior a esta última[8].
Dúvidas não restam certamente que o Direito do
Ambiente se contrói nas vestes de Direito Administrativo. Ainda assim, e como é
nossa convicção de que o lixo, à falta de melhor opinião se trata de uma coisa,
recorramos à tradição civilista[9]
numa tentativa da sua classificação. È tautológico definir coisa como tudo
aquilo que pode ser objecto de relações jurídicas. Esta definição, por ser de
tal modo genérica, permite acentuar o carácter objectivo das coisas mas alargando
excessivamente o seu alcance. O 202º do código Civil, no computo geral , vem
restringir coisa a tudo aquilo que, não sendo pessoa, tenha utilidade,
individualidade e seja susceptível de apropriação. Prossigamos à análise de
cada um destes itens, para que em momento posterior os possamos enquadrar no
âmago deste nosso estudo.
·
A utilidade não é uma característica específica das coisas, decorrendo
da noção de bem[10].
Assim sendo, deve o intérprete-aplicador do Direito subsumir a “coisa jurídica”
ao que puder ser considerado “bem jurídico”: algo que seja idóneo como um meio
lícito para a realização de fins ou objectivos também eles lícitos.
·
A individualidade não deve ser auscultada sob um ponto de vista de
naturalidade. Caso assim se fosse, todas as coisas seriam fisicamente
divisíveis. Não nos esqueçamos, a este propósito, de que as coisas jurídicas
são, por natureza, afectas à satisfacção de necessidades, pelo que a
individualidade deve ser aferida consoante a possibilidade de a coisa ser
individualmente útil, não tanto no domínio da física, mas antes no domínio
sócio-jurídico.
·
A susceptibilidade de apropriação, por fim, surge embrionariamente
ligada à possibilidade de a coisa ser pessoalmente apropriável e utilizável
para a realização de fins concretos.
Antes do “casamento” que urge fazer entre o regime
civilista e o Direito do Ambiente, cabe ainda aclarar mais uns poucos aspectos
relativos ao primeiro. Logo à partida, trazemos à colação a distinção operada
entre coisas corpóreas e coisas não corpóreas. Coisas corpóreas (como é o caso,
não nos restam dúvidas dos resíduos) são aquelas que se revelam aos sentidos,
sendo portanto sensorialmente constatáveis e apreensíveis, são as res qui tangi possunt. As coisas
incorpóreas, por outro lado, são aquelas que têm uma existência de carácter
meramente social, não existindo no mundo físico. Incluem-se neste lote e a
título de exemplo, as patentes, as marcas ou os bens intelectuais.
Posta esta breve e quase “tendenciosa” exposição da
natureza das coisas, deve o leitor começar a desvendar qual o caminho que temos
vindo a trilhar. Efectivamente, foi nossa intenção que tal sucedesse.
IV.
Lixo é de quem o produz, os Resíduos são nossos
O
“lixo”, trata-se de uma coisa, ainda que tenha, está bom de ver, inúmeras
particularidades. Do que anteriormente exposemos destacam-se logo à partida a
“susceptibilidade de apropriação” e a “utilidade”. Numa definição provinda da
Técnica, resíduos definem-se como “coisa” absolutamente inservível, inútil, sem
valor econômico. No mundo do Direito, e como adiante melhor desenvolveremos, os
resíduos são tidos como uma realidade de natureza diversa, já que a obrigação
ou intenção que o seu detentor tem de se desfazer da substância ou objecto em
causa, não se preclude sem demais a possibilidade de os resíduos ser tidos como
algo reaproveitável e de determinado “valor económico”.
A natureza jurídica dos resíduos, enquanto res, pode ser colocada numa de três categorias
distintas – res nullius, res privada e res publica – de
onde resultarão três diversos regimes de tratamento.
Os
resíduos, se tidos como res nullius serão
“coisa de ninguém”, a ninguém pertencendo nem podendo pertencendo, já que a apropriação
se encontra absolutamente exorbitante à res
nullius.
Vestindo
as vestes de res privada, os resíduos poderiam ser objecto de verdadeira
posse e mesmo propriedade. Deste modo, as responsabilidade sobre a sua
manutenção e destruição recairiam sem demais sobre o seu proprietário, ainda
que possivelmente com especias deveres de zelo face à perigosidade associada ao
objecto da sua propriedade.
Finalmente,
e enquanto res publica, a propriedade sobre os resíduos não pertence de
modo algum a um particular, pertencendo em exclusivo ao Estado. Qualquer coisa,
afecta ou não ao comércio, frutífera ou não frutífera, fungível ou não fungível
sairia fora da esfera jurídica do particular no momento em que este toma a
decisão (ou cumpre a obrigação) de dela se desfazer. No acto de “deitar fora”
operaria imediatamente a transferência da propriedade sobre dada realidade
fáctica.
Resíduos são substâncias, produtos ou objectos, que
ficaram incapazes de utilização para os fins para que forma produzidos. Nesta
primeira aproximação incluem-se naturalmente os restos de um processo de
produção, transformação ou utilização, assim como outros que, ainda que de
origem natural, sofreram uma transformação por via de actuação antrópica,
desintegrando-os do seu estado natural. Na verdade, o próprio conceito de
resíduo importa que por mais variada que seja a sua proveniência, forma ou
mesmo perigosidade, este esteja associado à actividade humana. De um modo geral
e não nos socorrendo ainda da legislação em vigor no tocante a esta matéria,
podemos classificar os resíduos quanto à sua origem em domésticos, industriais,
hospitalares, agrículas, etc. Numa outra perspectiva, ordenando-os quanto à sua
natureza fisicoquímica podemos considerar existirem nomeadamente os seguintes:
metais, vidros, papel, têxteis, vegetais, pilhas, plásticos, dejectos, etc.
Qualquer que seja o tipo de classificação que se
considere, certo é que existem resíduos que , como adiante veremos, apesar de nocivos
para o meio ambiente mais que não seja pela sua acumulação e deficiente
tratamento são de carácter não perigoso. Outros existem, no entanto que são
nocivos para o Homem e os restantes seres vivos, pelo seu carácter tóxico,
corrosivo, radioactivo ou explosivo. Note-se que neste particular fazemos uso
de um critério de relação entre os resíduos e os seres vivos e não como a natureza
genericamente considerada (onde para além da flora e da fauna se incluem
naturalmente também os recursos naturais, as águas, a atmosfera, etc)
Convém referir que ao contrário do que é
genericamente considerado, nem só a actividade industrial produz resíduos
classificados como perigosos. Na verdade, há resíduos perigosos de proveniência
doméstica, urbana e hospitalar, entre outras. Comum a todos eles não deixa de
ser o facto de requererem um tratamento específico, cuja responsabilidade de
eliminação dos riscos associados não pode de forma alguma ser assumido por quem
os produz.
Com o objectivo de garantir uma gestão de recursos
que reduz ao mínimo os seus efeitos no ambiente e na saúde pública, a
estratégia da União Europeia para uma correcta gestão de resíduos tem obedecido
a uma hierarquia de princípios , proposta pela primeira vez pela OCDE[11].
i) redução da produção e da nocividade dos resíduos; ii) reutilização, iii)
reciclagem, iv) valorização; v) destruição e colocação em aterro. Para mais, a
união pretende ainda que todos os seues Estados-Membros se torne
auto-suficiente e respeite um princípio de proximidade em matéria de eliminação
de resíduos, a que se junta um regime de livre circulação no interior da União
Europeia de resíduos para efeitos de valorização e reciclagem destes.
Já o abordámos no início desta nossa exposição, mas
julgamos que nunca é demais voltar a frisá-lo: a ecologia e a “saúde” do nosso
meio ambiente são uma preocupação da humanidade, como é dever desta, considerada no seu todo, a sua
tutela. Este verdadeiro “Espaço Shengen” de resíduos no sei da União europeia é
a perfeita expressão dos nossos considerandos. Apesar de a tutela do Ambiente
poder lucrar com a sua individualização enquanto direito subjectivo, só um
esforço concertado de vários sujeitos terá o condão de o fazer respeitar e
exercer. Determinados Estados-Membros poderão não ter condições materiais ou
técnicas para valorar e reciclar determinado conjunto de resíduos, devido
nomeadamente á natureza destes. Tal facto não os faz desonerar da obrigação de
o fazerem, já que o interesse comum, da humanidade, se sobrepõe. Considere-se
nomeadamente o caso hipotético de que Portugal não dispõe de recursos para
reciclar determinado metal, enquanto que o mesmo não se passa vamos supor que
na Grécia. Deste modo, nada obsta a que os resíduos mesmo que tenham sido
produzidos em Portugal, transitem em espaço europeu para a Grécia, onde serão
valorados e reciclados.
V.
Princípios Fundamentais do direito dos Resíduos
O conceito legal de resíduo consagrado no Direito
Português resultou de uma transposição quase que ipsis verbis do Direito Europeu, mais concretamente da Directiva
quadro dos resíduos. Conforme decalcado no artigo 3º.u) da Lei dos Resíduos, um
resíduo è “qualquer substância ou objecto de que o detentor se desfaz ou tem a
intenção ou a obrigação de se desfazer, nomeadamente os identificados na Lista
Europeia de Resíduos”.
Esta Lista Europeia de Resíduos foi aprovada pela Decisão Da Comissão
Europeia n. 2000/532/CE, de 3 de Maio, tendo sido alterada pelas Decisões da
Comissão n.º 2001/118/CE, de 16 de Janeiro, n.º 2001/119/CE, de 22 de janeiro e
n.º 2001/573/CE, do Conselho de 23 de Julho. Trata-se de uma lista harmonizada
de mais de quinhentas categorias e subcategorias de resíduos, através da qual é
atribuído um número de código a cada tipo de objecto ou substância. O alcance
da LER é limitado por esta mesma, ao considerar que “a inclusão de uma
determinada matéria na lista não significa que essa matéria constitua um
resíduo em todas as situações”. Na verdade, a matéria só será um resíduo quando
preencher os requisitos da definição legal. No seguimento do que anteriormente
tivemos oportunidade de afirmar, um resíduo só se transforma em tal, a partir
do momento em que o seu detentor tenha a intenção de se desfazer dele e o faça.
Para melhor perceber os aspectos particulares do
regime jurídico em causa, seguiremos com a apresentação dos princípios
estruturantes deste Direito.
·
Princípio da Precaução: Não cabe nesta obra expor o conteúdo deste
princípio à luz do Direito do Ambiente, mas antes do Direito dos resíduos.
Logicamente que em matéria de gestão de resíduos, estamos perante uma operação
que envolve riscos para a saúde pública, especialmente no caso de resíduos
radioactivos, cujos níveis de risco ultrapassam os de qualquer outra espécie de
resíduo. A Lei dos Resíduos prevê a possibilidade de serem decretadas medidas
cautelares, em caso de emergência ou perigo grave para a saúde pública ou para
o ambiente, no seu artigo 72º, de onde se depreende que não se cinge ao
tratamento de resíduos excepcionalmente perigosos. Daqui[12]
se retira a natureza precaucional do Direito dos Resíduos, ao permitir a
adopção de medidas antecipatórias e, nomeadamente a suspensão da operação,
antes da existência de provas de cariz científico que concretamente indiquem a
existência de danos ambientais.
·
Princípio da Prevenção: no âmbito do Direito dos Resíduos, o princípio
da prevenção assume duas feições, sendo elas a prevenção de resíduos e a
prevenção de danos por estes causados[13].
No tocante à prevenção de resíduos, a regulação estadual surge no sentido de
aprovar mecanismos que incentivem a produção o mais limpa possível, prolongando
no tempo o uso e o tempo de vida efectivo dos produtos, importando assim uma
minimização de resíduos, quer qualitativa, quer quantitativa. Quanto à
prevenção de danos, esta passa pelo controlo das operações de gestão, sendo
estas alvo de uma regulamentação tanto metódica quanto precisa, visando
acautelar danos para a saúde pública e para o Ambiente
·
Princípio do Poluidor Pagador: o princípio do poluidor pagador tem
reflexos tanto na gestão profissional como na gestão não profissional dos
resíduos. Alexandra Aragão[14]
afirma que o princípio da responsabilidade presente no artigo 5º mais não é do
que o principio do poluidor pagador. O que a lei prevê não é, verdade seja
dita, nem a sanção de crimes ou contra-ordenações ambientais ligadas aos
resíduos, nem a reparação de eventuais danos ambientais provocados pelos
resíduos, pelo que não se trata de responsabilidade em sentido próprio. Tudo
aponta, deste modo, que o que o legislador quis indicar foi que a gestão de
resíduos deve ficar a cargo de um operador económico definido. O responsável
pelos resíduos é que deve suportar economicamente os seus custos sociais e
ambientais. A responsabilidade pela gestão dos resíduos caberá em primeira
instância ao seu produtor.
·
Princípio do Planeamento: uma gestão de resíduos devidamente antecipada
por estratégias de gestão e mesmo metas a longo prazo sairá com certeza
reforçada na sua eficácia, assim como irá muito provalemente de encontro aos
objectivos traçados. A previsibilidade do processo garante uma correta gestão
dos resíduos.
Após o surgimento dos resíduos, que na sequência de
actos de produção, que na sequência de actos de consumo, dá-se início à sua
gestão, configurando esta o conjunto de operações necessárias para a destruição
ou acondicionamento dos resíduos. Na maioria dos casos, o produtor não disporá
de uma instalação própria e devidamente licenciada para eliminação e
valorização dos resíduos. Assim, não tendo o produtor essa capacidade de
gestão, ou no limite não ter interesse em desenvolvê-la, essa gestão é
legalmente transferida para um terceiro.
VI.
Gestão de Resíduos
Analisando as operações de gestão previstas na lei,
é possível separá-las em duas macro-categorias. As operações de gestão
intermédia e as operações de gestão finais. As operações intermédias são a
armazenagem, a recolha, o transporte, a triagem e o tratamento. Já as operações
de gestão final reconduzem-se à valorização dos resíduos ou à eliminação
destes. Vejamos cada uma das situações enunciadas separadamente.
Gestão Intermédia
·
Triagem: consiste em separar os resíduos mediante processos manuais ou
mecânicos, sem alteração das suas características, com vista à valorização ou a
outras operações de gestão.
·
Transporte: o transporte de resíduos em território nacional varia
consuante o grau de perigosidade dos resíduos, consoante o meio de transporte e
consoante o tipo de resíduo em causa.
Gestão Final
·
Deposição em aterro: trata-se da solução mais corrente em Portugal,
regulada pelo Decreto-Lei n. 183/2009, de 10 de Agosto. Os aterros são
instalações de deposição permanente ou por tempo indeterminado dos resíduos,
sendo que os seus efeitos far-se-ão sentir nas águas, solos e atmosfera, ás
quais se junta a oneração do solo nacional.
·
Inceneração: o regime da inceneração é algo paradoxal na medida em que
faz depender da natureza dos resíduos a incinerar a “actuação” de um verdadeiro
controlo. Oscila entre os mais apertados controlos ambientais existentes no
ordenamento jurídico português e o estar praticamente isenta de qualquer tipo
de controlo. Se se trataqr de inceneração de resíduos perigosos, a instalação
em causa pode, nomeadamente cair no âmbito de um processo de avaliação de
impacto ambiental. Se, pelo contrário, se tratar de operações de inceneração de
biomassa (florestais ou agrículas) não é necessário qualquer tipo de
licenciamento. A inceneração abrange processos iminentemente térmicos, como
serão a combustão a pirólise ou a gaseificação.
VII.
Em Especial, o caso da co-inceneração
Para que o leitor possa mais facilmente visualizar
as questões que nesta modalidade de tratamento de resíduos se colocam
principiaremos por descrever sumariamente o processo.
Contrariamente ao que acontece com a queima numa
incineradora própria para a queima de resíduos (vulgarmente designada de
incineradora dedicada), a co-inceneração numa cimenteira é um processo bastante
semelhante ao processo genérico de produção de cimento. O mesmo é dizer que a
descriçãoi do funcionamento normal de um forno de cimento espelha quase na
totalidade o modo de operação de um processo de co-inceneração numa cimenteira.
O cimento é uma material existente na forma de pó
fino, que tem origem na mistura de clinquer com outras substâncias,
nomeadamente o gesso ou escórias siliciosas. As proporções de uma e outra rocha
variam consoante o tipo de cimento que o seu “produtor” procure obter, já que
as mesmas fazem variar as características fisícas e as propriedades de
aplicação do cimento. O cimento dito “normal” é formado por aproximadamente 96%
de clinquer e 45 de gesso. O primeiro, principal parte constituinte do cimento,
é produzido mediante um processo de transformação térmica, a elevada temperatura
e em fornos apropriados. Nestes mesmos fornos leva-se a cabo uma mistura de uma
mescla de rochas que contêm aproximadamente 80% de carbonato de cálcio, 15% de
dióxido de silício, 3% de óxido de alumínio e quantidades virtualmente irrisórias
de ferro e enxofre.
Existem dois tipos principais de instalações de
produção de clinquer. Por via húmida e por via seca. Enquanto que nas unidades
de via húmida, a matéria-prima é moída juntamente com água, os fornos por via
seca não usam água para moer a matéria-prima.
Tanto numa como noutra modalidade, o processo
requer a utilização de elevadíssima energia térmica que, como adiante veremos,
originam problemas de emissão de gases poluentes. Uma unidade de produção de
cimento origina um conjunto de efluentes para o ambiente de natureza ao que
tudo indica bem menos nociva do que se possa pensar.
Os processos de co-inceneração e de inceneração
dedicada são os únicos que, de modo generalizado, são utilizados à escala
global para a destruição térmica de resíduos industriais perigosos. A
existência dos dois tipos de solução é uma demonstração ao que tudo indica
cabal de que nenhuma das duas alternativas tem sobre a outra vantagens claras.
[1] MARIA
GARCIA, in “ O lugar do Direito na protecção do ambiente”, Almedina 2007
[2] Cfr “o
Direito e a Ciência”, AAFDl 2009, pág 13
[3] Vasco
Pereira da Silva, “Em busca do Acto Administrativo Perdido”
[4] Carla
Amado Gomes desenvolve este mesmo tema, referindo-se nomeadamente á origem
anglo-saxónica das MTDs e considerando, com apoio no artigo 2º/I) do DL 173/08,
de 26 de Agosto, que estas traduzem “o compromisso entre o imperativo de
antecipação de riscos e a necessidade de manter um determinado nível de crescimento
económico, sobretudo no plano do desenvolvimento industrial. “Direito
Administrativo do Ambiente”.
[5] “Raras
são as formas de produzir inocentes face ao ambiente e, por conseguinte, face
ao Homem”, Cf. Michel Bachelet, Ingerência ecológica – Direito ambiental em
questão, Instituto Piaget 1995
[6] VASCO
PEREIRA DA SILVA, in “Verde, cor de Direito”, Almedina 2002
[7] J.J.
Gomes Canotilho, “Jurisdização da ecologia ou ecologização do Direito”, in
RJUA, 1995, n.º4
[8] José
Alberto Vieira, “Direitos Reais”, Coimbra 2008
[9] J.J.
Gomes Canotilho considera, a propósito da Responsabilidade por Danos Ambientais
que o Direito civil se trata como que de um refúgio do Direito do ambiente,
assumindo um carácter subsidiário nas construção do regime da responsabilidade.
Afirma o Professor “constituiria , a nosso ver um erro graves desprezar as
potencialidades da tutela civilística do Ambiente. Mesmo perante textos como o
do nosso código Civil, proprietisticamente centrado e industrialisticamente
sensibilizado (…) é possível bater nos enunciados semânticos (…) e descobrir
neles inusitadas virtualidades ecológicas”, in “Actos Autorizativos Jurídico-Públicos
e Responsabilidade por Danos Ambientais”, Boletim da Universidade de Direito da
Universidade de Coimbra, vol. LXIX, 1993
[10] “As
necessidades, as apetências e os fins prosseguidos pelas pessoas carecem de
meios para poderem ser satisfeitos, realizados ou alcançados. Os bens são os
meios, são tudo aquilo que não seja pessoa e que tiver uma utilidade, isto é, que
for apto a satisfazer uma necessidade, a realizar uma apetência ou a alcançar
um fim”, Pedro Pais Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, Almedina
2007
[11]
Sebastião Formosinho et al, in
“Parecer Relativo ao Tratamento de Resíduos Industriais Perigosos”, Principia
2000
[12] Artigo
72º da Lei dos Resíduos: “Medidas cautelares: 1- Os membros do Governo
responsáveis pelas áreas do ambiente e da saúde podem, por despacho e em caso
de emergência ou perigo grave para a saúde pública ou para o ambiente, adoptar
medidas cautelares adequadas, nomeadamente a suspensão de qualquer operação de
gestão de resíduos. 2- As medidas cautelares caducam se não for tomada uma
decisão definitiva sobre a situação jurídica em causa no prazo de seis meses,
prorrogável uma única vez por igual período”
[13] Estas
duas acepções são abordadas conjuntamente no artigo 6º da Lei dos resíduos
[14]
“Direito Administrativo dos Resíduos”, Almedina 2007
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