Recensão ao artigo “Actos Autorizativos Jurídico-Públicos e
Responsabilidade por Danos Ambientais” do Boletim da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra, de José Gomes Canotilho, de 1993
O artigo do Professor José
Joaquim Gomes Canotilho que nos foi dado a ler, com o objectivo de lhe ser
feita uma recensão, desenvolve-se em torno da discussão do problema relativo
aos efeitos das autorizações administrativas na ordem jurídico-privada e a
responsabilidade por danos ao ambiente, provocados por acções praticadas ao
abrigo dessa mesma autorização. Assim sendo, o Professor apresenta como tema
nuclear do artigo uma interrogação: Qual
o efeito que um acto administrativo autorizativo de uma actividade por parte de
pessoas privadas (individuais ou colectivas) tem sobre a qualificação como
ilícita dessa actividade em sede jurídico-civil?
Sublinha o Professor, que os
efeitos do acto autorizativo jurídico-público incidem não só sobre as relações
entre a entidade pública que emanou o acto e o beneficiário do mesmo, como
ainda sobre esse beneficiário numa relação com outro ente privado. Aqui se fala
do efeito conformador ou da eficácia externa dos actos administrativos
autorizativos jurídico-públicos. Neste contexto, ainda releva mencionar o
efeito legalizador dos actos em questão, na medida em que um acto autorizativo
poderá tornar lícito o ilícito, justificando os danos na esfera de terceiros. A
questão relativa ao efeito conformador configura-se numa situação de
“deslocação do problema dos danos do terreno da responsabilidade por actos
ilícitos para o campo da responsabilidade do Estado por actos lícitos”, ou
seja, um caso claro em que se vê consagrada a teoria do sacrifício. Todavia,
havendo um efeito legalizador, poderá o particular “fugir” à indemnização? A
resposta dada pelo Professor é negativa na medida em que o efeito legalizador
terá sempre que estar “balizado” pelos limites constitucionais. Posteriormente,
o Professor faz a destrinça entre danos ecológicos e danos ambientais apontando
os segundos como lesões de bens jurídicos concretos constitutivos do bem
ambiente, e os primeiros como lesões feitas ao “bem ambiente unitariamente
considerado” no sentido em que neste tipo de danos não existe qualquer relação
lesante/lesado mas sim um interesse geral de defesa do ambiente. O Professor
defende que apenas os danos ambientais poderão desencadear mecanismos de
responsabilidade individual não afastando, porém, a possibilidade de os danos
ecológicos serem ressarcidos por se continuar a “falar” de uma alteração,
deterioração ou destruição e ainda para mais de um direito constitucionalmente
consagrado como fundamental. A possibilidade de ressarcimento deste tipo de
danos ocorrerá, nomeadamente, em casos de cumulação com danos ambientais. Acrescenta-se
aos efeitos já enumerados, o efeito preclusivo do acto autorizativo, isto é, a
exclusão de responsabilidade de um, por exemplo, estabelecimento industrial na
medida em que não será, em termos civis, o “agressor” por via do efeito
legalizador do licenciamento e, também, se excluirá a responsabilidade da
administração por ter cumprido com o legalmente exigido levando, por
conseguinte, à preclusão de todas e quaisquer pretensões judiciais de
terceiros.
Para o Professor, o efeito
legalizador terá assim quatro vertentes: como causa justificativa da ilicitude,
vinculação de outras autoridades (à imagem do efeito de caso julgado material
das sentenças judiciais), vinculação de um eventual terceiro lesado e, por
último, a vinculação do suposto lesante ou mero particular beneficiário. Quanto
à vinculação de outras autoridades, terá a sua lógica na óptica de princípios
basilares como o da separação de poderes e competência ou de segurança
jurídica. Quanto à vinculação do terceiro eventualmente lesado, o problema
densifica-se na medida em que aceitando tal facto, estaríamos a tornar o
Direito Administrativo como pressuposto de outros ordenamentos, ou seja,
tornaríamos o Direito Civil ou o Direito Penal subalternos do Direito Administrativo.
Se quem defende tal posição levantaria argumentos como unidade da ordem
jurídica com o intuito de evitar contradições normativas resolvendo a situação
com “uma” ilicitude igual para todos, o Professor discorda e diz ser de difícil
aceitação. Pois apesar do que é administrativo pode e deve ser aceite pelo ordenamento
civil e/ou penal, o Direito Civil e o Direito Penal têm tarefas próprias, logo
o Direito Administrativo nunca poderia ser seu pressuposto. A posição do
Professor é até sustentada por uma afirmação de Larenz que considera a
ilicitude um conceito funcionalmente determinado segundo os específicos termos
de direito (teoria de ilicitudes diferenciadas), levando a concluir, que não só
não poderá ter um efeito conformador tal que subalterne os restantes
ordenamentos jurídicos como não poderá ser uma causa justificativa de ilicitude
jurídico-transversal e absoluta. Se a argumentação do Professor claramente se
mostra devastadora para o argumento da unidade da ordem jurídica, o problema
das possíveis contradições normativas mantém-se e impõe-se que seja resolvido.
Desta feita, se dentro do mesmo ramo de direito, a norma de justificação da
ilicitude prevalece sempre sobre a norma fixadora da ilicitude, o que fazer
quando as normas se apresentam em diferentes ramos de direito? Se se mantiver a
solução estamos a optar pela hierarquização de ramos de direito e tal situação
é insustentável pelo que existem duas possibilidades: a primeira, liminarmente
afastada pelo Professor, defende a restrição do efeito justificador da norma de
justificação deixando o suposto lesante “à mão” de todas e quaisquer pretensões
de terceiros; a segunda, apoiada pelo Professor com as devidas reservas,
sustenta que a norma de justificação deve prevalecer se esta estabelecer,
claramente, os pressupostos conducentes à exclusão da ilicitude, ou seja, não
há sempre exclusão de ilicitude. Como pressupostos básicos para concluir pela
clara exclusão teríamos então: a expressa previsão legal do efeito
justificativo, tornando-se um direito inquestionável por terceiros
eventualmente lesados; a previsão normativa do efeito preclusivo do acto
autorizativo excluindo, portanto, acções de defesa por parte de terceiros.
Já supramencionados que o limite
do efeito justificativo seriam os direitos fundamentais, no entanto importa
saber por quem serão suportados os danos mesmo quando aqueles direitos são
respeitados. “Inclina-se” o Professor para a teoria do sacrifício alertando que
o Estado deve ser precavido nas autorizações que concede e, paralelamente
assumir corresponsabilidade perante eventuais lesões de direitos fundamentais.
Nesta sede se encontra a importância de reserva de lei patente no artigo 18/2
da CRP e a consequente exigência de, em caso de restrição ou preclusão, se
tenham em conta critérios como o da adequação, aptidão e necessidade e ainda se
respeite o princípio da proibição do excesso.
O Professor divide os âmbitos de
eficácia do acto em três: pessoal, material e funcional. O âmbito pessoal
(núcleo de agentes afectados pelo acto) apresenta-se de difícil definição
pautando-se por uma indeterminação apenas, parcialmente, solucionável
casuisticamente. Quanto ao âmbito material, isto é, os bens ressarcíveis,
defende um alargamento da solução clássica (apenas aos titulares dos prédios
vizinhos, artigos 1346 e 1347 do CC) a bens como a vida, saúde, ambiente e
qualidade de vida. Por último, o âmbito funcional deve corresponder à medida da
autorização, ou seja, o efeito de preclusão termina onde não existe
conformidade entre a autorização e o estabelecimento autorizado. Tal solução
aplicar-se-á de igual modo quando não são cumpridos as directivas do acto (à
luz do exigido no artigo 121 do CPA) ou quando o acto foi praticado sob reserva
de revogação. Quanto aos limites funcionais do conteúdo de regulação importa
referir os seus limites internos que corresponderão à medida da competência
decisória legalmente conferida à autoridade administrativa.
Quanto a este âmbito funcional
poder-se-á levantar alguns problemas aquando de certas situações, nomeadamente,
autorizações antigas, autorizações ilegais ou autorizações adquiridas por via
da prática de crimes. Quanto às primeiras, o Professor diz que a autorização só
se torna ilícita quando o seu titular tenha perfeita noção da ilicitude do seu
comportamento gravemente nefasto para o ambiente. Quanto aos segundos, a
resposta é obviamente a nulidade prevista no artigo 133 do CPA, logo, sendo nulos
não são eficazes logo não produzirão efeitos. Quanto aos últimos, sendo certo
que o Direito Penal aponta a sua ineficácia com fundamento em abuso de direito,
apesar da concordância do Professor com a ineficácia de tais actos, a sua
fundamentação é diferente, isto é, vale-se da explícita previsão destes casos
no artigo 133 do CPA para arguir a sua nulidade.
O Professor “debruça-se” sobre a
questão da natureza jurídica das pretensões indemnizatórias defendendo que
existe um sacrifício justificativo de uma pretensão jurídico-pública apenas
quando a actividade se presta a satisfazer finalidades públicas como é exemplo
a construção de uma auto-estrada. Nos restantes casos, estamos perante um
sacrifício legitimador de uma pretensão jurídica-privada, isto é,
responsabilidade por actos lícitos a cargo de entidades privadas. Para o
Professor, esta é a solução que resulta da lei com base nos artigos 1347 do CC
e dos artigos 40/4 e 5 e 41 da Lei de Bases do Ambiente.
Quanto às conclusões finais do Professor, à margem das supracitadas em cada
questão levantada na exposição, importa realçar:
· Que o Direito Civil deverá incluir no seu modus operandi um mecanismo de garantia
do Direito Constitucionalmente consagrado que são os direitos ao ambiente e à
qualidade de vida;
· Que se impõe que o Direito Penal seja
desenvolvido como auxílio do Direito do Ambiente;
·
Que o Direito Administrativo deve reabilitar o
direito de polícia para uma melhor tutela do direito ao ambiente;
· Que o Direito Constitucional é claro em apontar
a necessidade de defesa do ambiente na medida em que adopta o direito ao
ambiente como direito fundamental (artigo 66 da CRP).
Tendo em conta o lido e o exposto,
tenho para mim que a possível responsabilidade proveniente de danos causados ao
abrigo de um acto autorizativo deverá ser, em última análise, do Estado. Se não
vejamos: a Constituição incumbe, claramente, a tarefa de prevenção e controlo
dos níveis de qualidade do ambiente ao Estado (artigo 66/2); o Decreto-Lei
109/91 referente ao procedimento de licenciamento detém um complexo de
exigências que alimentam a existência da necessidade de precaução e um controlo
e fiscalização ao longo da vigência dessa autorização concedida pela
Administração; a possibilidade de emanação de actos autorizativos está dependente
de reserva de lei como está constitucionalmente previsto no artigo 18/2; qualquer
particular devidamente interessado e com relação directa com a futura
instalação, terá o direito de intervenção no procedimento administrativo como
vem previsto no artigo 52 do CPA; se essa via não for suficiente terá a
possibilidade não só de recurso hierárquico como ainda de recurso contencioso;
a segurança jurídica e a confiança nos actos emanados pela Administração exigem
que o particular beneficiário esteja protegido de quaisquer pretensões alheias;
não faz sentido que um particular beneficiário cumpridor do conteúdo regulador
do acto de autorização não possa opor esse mesmo acto a possíveis danos
provenientes que foram, sem dúvida, calculados pela Administração aquando do
momento de decisão para o conceder. Assim sendo, todos os riscos subjacentes
que possam surgir por via de um acto autorizativo deverão ser calculados pelo
Estado e em caso de efectivação dos mesmos, deverão ser imputados a esse mesmo
Estado que concedeu o tal acto de autorização. Somente os danos fora do risco
normal previsto ou calculado no acto poderão ser imputados ao próprio
particular, mas esses saberá ele próprio que os causa e que “se pôs a jeito” de
ser responsabilizado, não sendo então legítimo opor o acto como forma de defesa
às possíveis pretensões de terceiros lesados. Não faço, todavia, destrinça
quanto aos direitos lesados pois sejam eles fundamentais ou não, deve ser o
próprio acto a enumerar a amplitude justificativa do mesmo sob pena de se
tornar muito difícil definir em que contexto e de que forma poderemos
considerar em determinada situação se estamos ou não perante os riscos normais
previstos no acto ou já perante violação do direito ao ambiente como direito
fundamental. Essa solução revelar-se-ia de difícil análise levando o potencial
particular beneficiário do acto a pensar duas vezes se queria ou não ser
beneficiário do mesmo, tendo em conta a tamanha insegurança jurídica em que se
poria se dele fosse posteriormente destinatário. Conclui-se, portanto, que a
minha opinião, ressalvada a questão dos limites constitucionais do efeito
legalizador, não será muito diferente da sufragada pelo Professor Gomes
Canotilho ao longo do artigo analisado.
JPM, 19685
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