segunda-feira, 1 de abril de 2013


Recensão ao artigo “Actos Autorizativos Jurídico-Públicos e Responsabilidade por Danos Ambientais” do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, de José Gomes Canotilho, de 1993

O artigo do Professor José Joaquim Gomes Canotilho que nos foi dado a ler, com o objectivo de lhe ser feita uma recensão, desenvolve-se em torno da discussão do problema relativo aos efeitos das autorizações administrativas na ordem jurídico-privada e a responsabilidade por danos ao ambiente, provocados por acções praticadas ao abrigo dessa mesma autorização. Assim sendo, o Professor apresenta como tema nuclear do artigo uma interrogação: Qual o efeito que um acto administrativo autorizativo de uma actividade por parte de pessoas privadas (individuais ou colectivas) tem sobre a qualificação como ilícita dessa actividade em sede jurídico-civil?

Sublinha o Professor, que os efeitos do acto autorizativo jurídico-público incidem não só sobre as relações entre a entidade pública que emanou o acto e o beneficiário do mesmo, como ainda sobre esse beneficiário numa relação com outro ente privado. Aqui se fala do efeito conformador ou da eficácia externa dos actos administrativos autorizativos jurídico-públicos. Neste contexto, ainda releva mencionar o efeito legalizador dos actos em questão, na medida em que um acto autorizativo poderá tornar lícito o ilícito, justificando os danos na esfera de terceiros. A questão relativa ao efeito conformador configura-se numa situação de “deslocação do problema dos danos do terreno da responsabilidade por actos ilícitos para o campo da responsabilidade do Estado por actos lícitos”, ou seja, um caso claro em que se vê consagrada a teoria do sacrifício. Todavia, havendo um efeito legalizador, poderá o particular “fugir” à indemnização? A resposta dada pelo Professor é negativa na medida em que o efeito legalizador terá sempre que estar “balizado” pelos limites constitucionais. Posteriormente, o Professor faz a destrinça entre danos ecológicos e danos ambientais apontando os segundos como lesões de bens jurídicos concretos constitutivos do bem ambiente, e os primeiros como lesões feitas ao “bem ambiente unitariamente considerado” no sentido em que neste tipo de danos não existe qualquer relação lesante/lesado mas sim um interesse geral de defesa do ambiente. O Professor defende que apenas os danos ambientais poderão desencadear mecanismos de responsabilidade individual não afastando, porém, a possibilidade de os danos ecológicos serem ressarcidos por se continuar a “falar” de uma alteração, deterioração ou destruição e ainda para mais de um direito constitucionalmente consagrado como fundamental. A possibilidade de ressarcimento deste tipo de danos ocorrerá, nomeadamente, em casos de cumulação com danos ambientais. Acrescenta-se aos efeitos já enumerados, o efeito preclusivo do acto autorizativo, isto é, a exclusão de responsabilidade de um, por exemplo, estabelecimento industrial na medida em que não será, em termos civis, o “agressor” por via do efeito legalizador do licenciamento e, também, se excluirá a responsabilidade da administração por ter cumprido com o legalmente exigido levando, por conseguinte, à preclusão de todas e quaisquer pretensões judiciais de terceiros.

Para o Professor, o efeito legalizador terá assim quatro vertentes: como causa justificativa da ilicitude, vinculação de outras autoridades (à imagem do efeito de caso julgado material das sentenças judiciais), vinculação de um eventual terceiro lesado e, por último, a vinculação do suposto lesante ou mero particular beneficiário. Quanto à vinculação de outras autoridades, terá a sua lógica na óptica de princípios basilares como o da separação de poderes e competência ou de segurança jurídica. Quanto à vinculação do terceiro eventualmente lesado, o problema densifica-se na medida em que aceitando tal facto, estaríamos a tornar o Direito Administrativo como pressuposto de outros ordenamentos, ou seja, tornaríamos o Direito Civil ou o Direito Penal subalternos do Direito Administrativo. Se quem defende tal posição levantaria argumentos como unidade da ordem jurídica com o intuito de evitar contradições normativas resolvendo a situação com “uma” ilicitude igual para todos, o Professor discorda e diz ser de difícil aceitação. Pois apesar do que é administrativo pode e deve ser aceite pelo ordenamento civil e/ou penal, o Direito Civil e o Direito Penal têm tarefas próprias, logo o Direito Administrativo nunca poderia ser seu pressuposto. A posição do Professor é até sustentada por uma afirmação de Larenz que considera a ilicitude um conceito funcionalmente determinado segundo os específicos termos de direito (teoria de ilicitudes diferenciadas), levando a concluir, que não só não poderá ter um efeito conformador tal que subalterne os restantes ordenamentos jurídicos como não poderá ser uma causa justificativa de ilicitude jurídico-transversal e absoluta. Se a argumentação do Professor claramente se mostra devastadora para o argumento da unidade da ordem jurídica, o problema das possíveis contradições normativas mantém-se e impõe-se que seja resolvido. Desta feita, se dentro do mesmo ramo de direito, a norma de justificação da ilicitude prevalece sempre sobre a norma fixadora da ilicitude, o que fazer quando as normas se apresentam em diferentes ramos de direito? Se se mantiver a solução estamos a optar pela hierarquização de ramos de direito e tal situação é insustentável pelo que existem duas possibilidades: a primeira, liminarmente afastada pelo Professor, defende a restrição do efeito justificador da norma de justificação deixando o suposto lesante “à mão” de todas e quaisquer pretensões de terceiros; a segunda, apoiada pelo Professor com as devidas reservas, sustenta que a norma de justificação deve prevalecer se esta estabelecer, claramente, os pressupostos conducentes à exclusão da ilicitude, ou seja, não há sempre exclusão de ilicitude. Como pressupostos básicos para concluir pela clara exclusão teríamos então: a expressa previsão legal do efeito justificativo, tornando-se um direito inquestionável por terceiros eventualmente lesados; a previsão normativa do efeito preclusivo do acto autorizativo excluindo, portanto, acções de defesa por parte de terceiros.

Já supramencionados que o limite do efeito justificativo seriam os direitos fundamentais, no entanto importa saber por quem serão suportados os danos mesmo quando aqueles direitos são respeitados. “Inclina-se” o Professor para a teoria do sacrifício alertando que o Estado deve ser precavido nas autorizações que concede e, paralelamente assumir corresponsabilidade perante eventuais lesões de direitos fundamentais. Nesta sede se encontra a importância de reserva de lei patente no artigo 18/2 da CRP e a consequente exigência de, em caso de restrição ou preclusão, se tenham em conta critérios como o da adequação, aptidão e necessidade e ainda se respeite o princípio da proibição do excesso.

O Professor divide os âmbitos de eficácia do acto em três: pessoal, material e funcional. O âmbito pessoal (núcleo de agentes afectados pelo acto) apresenta-se de difícil definição pautando-se por uma indeterminação apenas, parcialmente, solucionável casuisticamente. Quanto ao âmbito material, isto é, os bens ressarcíveis, defende um alargamento da solução clássica (apenas aos titulares dos prédios vizinhos, artigos 1346 e 1347 do CC) a bens como a vida, saúde, ambiente e qualidade de vida. Por último, o âmbito funcional deve corresponder à medida da autorização, ou seja, o efeito de preclusão termina onde não existe conformidade entre a autorização e o estabelecimento autorizado. Tal solução aplicar-se-á de igual modo quando não são cumpridos as directivas do acto (à luz do exigido no artigo 121 do CPA) ou quando o acto foi praticado sob reserva de revogação. Quanto aos limites funcionais do conteúdo de regulação importa referir os seus limites internos que corresponderão à medida da competência decisória legalmente conferida à autoridade administrativa.
Quanto a este âmbito funcional poder-se-á levantar alguns problemas aquando de certas situações, nomeadamente, autorizações antigas, autorizações ilegais ou autorizações adquiridas por via da prática de crimes. Quanto às primeiras, o Professor diz que a autorização só se torna ilícita quando o seu titular tenha perfeita noção da ilicitude do seu comportamento gravemente nefasto para o ambiente. Quanto aos segundos, a resposta é obviamente a nulidade prevista no artigo 133 do CPA, logo, sendo nulos não são eficazes logo não produzirão efeitos. Quanto aos últimos, sendo certo que o Direito Penal aponta a sua ineficácia com fundamento em abuso de direito, apesar da concordância do Professor com a ineficácia de tais actos, a sua fundamentação é diferente, isto é, vale-se da explícita previsão destes casos no artigo 133 do CPA para arguir a sua nulidade.

O Professor “debruça-se” sobre a questão da natureza jurídica das pretensões indemnizatórias defendendo que existe um sacrifício justificativo de uma pretensão jurídico-pública apenas quando a actividade se presta a satisfazer finalidades públicas como é exemplo a construção de uma auto-estrada. Nos restantes casos, estamos perante um sacrifício legitimador de uma pretensão jurídica-privada, isto é, responsabilidade por actos lícitos a cargo de entidades privadas. Para o Professor, esta é a solução que resulta da lei com base nos artigos 1347 do CC e dos artigos 40/4 e 5 e 41 da Lei de Bases do Ambiente.

Quanto às conclusões finais do Professor, à margem das supracitadas em cada questão levantada na exposição, importa realçar:
·      Que o Direito Civil deverá incluir no seu modus operandi um mecanismo de garantia do Direito Constitucionalmente consagrado que são os direitos ao ambiente e à qualidade de vida;
·                  Que se impõe que o Direito Penal seja desenvolvido como auxílio do Direito do Ambiente;
·         Que o Direito Administrativo deve reabilitar o direito de polícia para uma melhor tutela do direito ao ambiente;
·                   Que o Direito Constitucional é claro em apontar a necessidade de defesa do ambiente na medida em que adopta o direito ao ambiente como direito fundamental (artigo 66 da CRP).

Tendo em conta o lido e o exposto, tenho para mim que a possível responsabilidade proveniente de danos causados ao abrigo de um acto autorizativo deverá ser, em última análise, do Estado. Se não vejamos: a Constituição incumbe, claramente, a tarefa de prevenção e controlo dos níveis de qualidade do ambiente ao Estado (artigo 66/2); o Decreto-Lei 109/91 referente ao procedimento de licenciamento detém um complexo de exigências que alimentam a existência da necessidade de precaução e um controlo e fiscalização ao longo da vigência dessa autorização concedida pela Administração; a possibilidade de emanação de actos autorizativos está dependente de reserva de lei como está constitucionalmente previsto no artigo 18/2; qualquer particular devidamente interessado e com relação directa com a futura instalação, terá o direito de intervenção no procedimento administrativo como vem previsto no artigo 52 do CPA; se essa via não for suficiente terá a possibilidade não só de recurso hierárquico como ainda de recurso contencioso; a segurança jurídica e a confiança nos actos emanados pela Administração exigem que o particular beneficiário esteja protegido de quaisquer pretensões alheias; não faz sentido que um particular beneficiário cumpridor do conteúdo regulador do acto de autorização não possa opor esse mesmo acto a possíveis danos provenientes que foram, sem dúvida, calculados pela Administração aquando do momento de decisão para o conceder. Assim sendo, todos os riscos subjacentes que possam surgir por via de um acto autorizativo deverão ser calculados pelo Estado e em caso de efectivação dos mesmos, deverão ser imputados a esse mesmo Estado que concedeu o tal acto de autorização. Somente os danos fora do risco normal previsto ou calculado no acto poderão ser imputados ao próprio particular, mas esses saberá ele próprio que os causa e que “se pôs a jeito” de ser responsabilizado, não sendo então legítimo opor o acto como forma de defesa às possíveis pretensões de terceiros lesados. Não faço, todavia, destrinça quanto aos direitos lesados pois sejam eles fundamentais ou não, deve ser o próprio acto a enumerar a amplitude justificativa do mesmo sob pena de se tornar muito difícil definir em que contexto e de que forma poderemos considerar em determinada situação se estamos ou não perante os riscos normais previstos no acto ou já perante violação do direito ao ambiente como direito fundamental. Essa solução revelar-se-ia de difícil análise levando o potencial particular beneficiário do acto a pensar duas vezes se queria ou não ser beneficiário do mesmo, tendo em conta a tamanha insegurança jurídica em que se poria se dele fosse posteriormente destinatário. Conclui-se, portanto, que a minha opinião, ressalvada a questão dos limites constitucionais do efeito legalizador, não será muito diferente da sufragada pelo Professor Gomes Canotilho ao longo do artigo analisado.

JPM, 19685

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