Nos dias de hoje, podemos observar que a
linha que separa a Administração do particular se torna progressivamente mais
estreita. O fosso que existia entre estes dois mundos há muito que foi já
dissipado por uma ponte cujas vigas não são feitas de metal, mas sim de
comunicação. Se nos centrarmos em especial no Direito do Ambiente, podemos
verificar que essa tendência ganha contornos mais sólidos se atentarmos no tema
dos direitos de participação nos procedimentos ambientais de massa, assim como
nos procedimentos de reduzido número de afectados. Será esse o objecto deste
texto: a possibilidade de intervenção dos particulares dentro da actividade da
Administração relacionada com o Direito do Ambiente.
Quando nos encontramos na presença de um
procedimento que possa vir – ou venha – a originar efeitos colaterais em vários
sujeitos para além das entidades público e privadas que estão no epicentro do
procedimento, devemos ter em conta que todas as partes envolvidas, sem
excepção, terão o direito de intervir nesse procedimento. Perfilhador dessa
opinião será VASCO PEREIRA DA SILVA, quando afirma que as decisões
administrativas «não dizem respeito a um relacionamento meramente bilateral
entre os privados e os órgãos decisores, mas correspondem antes a um
relacionamento multipolar, uma vez que produzem efeitos susceptíveis de afectar
um grande número de sujeitos»[1].
VASCO PEREIRA DA SILVA introduz-nos assim ao
conceito de multilateralidade. Quando
a Administração e um determinado particular chegam a um certo acordo que possa
vir a ter impacto ambiental, não basta que a relação que emirja dessa situação
seja bilateral. As entidades em jogo não são somente a Administração e o
particular. Existe pois a estrita necessidade de analisar a situação de um
ponto de vista mais amplo, trazendo para o tabuleiro de jogo todos os sujeitos
que sejam atingidos pelo acontecimento. É precisamente nesse sentido que a
multilateralidade se vai sobrepor à bilateralidade. A principal novidade
contudo, factor este que vai quebrar com o tradicionalismo visível nos últimos
anos, reside no tipo de procedimentos que podem levar a esse direito de
participação. Para além das decisões genéricas, temos igualmente as decisões
mais particularistas, que num primeiro momento poderão parecer mais bilaterais
do que multilaterais. Por exemplo, quando a Administração concede uma
autorização administrativa para que um particular construa uma fábrica, o
prisma a analisar não pode ser somente o da relação entre a Administração e o
particular, mas também todo e qualquer indivíduo que possa ser afectado com a
construção dessa fábrica.
Assim sendo, dentro do Direito do Ambiente,
deverá haver uma primazia desse carácter de multilateralidade, no sentido em
que uma decisão administrativa não provoca consequências somente em dois polos,
mas sim em vários. VASCO PEREIRA DA SILVA oferece os exemplos de uma «licença
ambiental para a instalação de uma fábrica, assim como a autorização de
construção numa zona de paisagem protegida»[2]. Como se pode observar,
seria injusto afirmar que as únicas entidades que têm a palavra nesta
problemática são a Administração e o destinatário do respectivo acto
administrativo. Como não poderia deixar de ser, também os particulares, como
por exemplo os moradores que habitam na periferia da futura fábrica ou da zona
protegida terão o direito de interagir com esta situação, caso não fiquem
indiferentes à mesma. É neste sentido que se fala tanto de multilateralidade,
como de procedimentos ambientais de massa, actuações que envolvem
necessariamente uma multiplicidade de destinatários.
Porém, tendo em conta o tema lançado à mesa,
não basta distinguir bilateralidade de multilateralidade. Será também oportuno
diferenciar os procedimentos administrativos de massa dos procedimentos administrativos
de reduzido número de afectados.
O mundo em que nos movimentamos continua a
ser o da multilateralidade, sendo todavia distinto o número de destinatários
lesados que advêm da actuação da Administração conjuntamente com um determinado
particular. Deste modo torna-se
relevante ter uma noção da quantificação de particulares que são afectados
durante o processo em questão. Assim, teremos dentro do âmbito da
multilateralidade um procedimento mais limitado e determinável – os
procedimentos relativos a actos administrativos que apenas afectem um número
reduzido de sujeitos, assim como um procedimento administrativo que envolve uma
multiplicidade de sujeitos, tornando-se menos determinável – os procedimentos ambientais
de massa.
Cabe no entanto saber qual a relevância
prática da distinção feita no parágrafo acima. Quais serão as consequências
práticas dessa diferença procedimental?
Como sustenta VASCO PEREIRA DA SILVA[3], a principal disparidade
reside na componente subjectiva que abarca cada um dos procedimentos. De facto,
quando está em jogo um procedimento administrativo relativo a uma decisão
susceptível de afectar um número reduzido de privados, essa componente
subjectiva será muito mais forte do que nos procedimentos de massa. Isto porque
nos primeiros casos, os particulares afectados serão sempre titulares de
direitos legalmente protegidos, enquanto que nos últimos, basta que haja algum
interesse fáctico na questão. Por outras palavras, diz-nos um simples
raciocínio lógico que serão muitos os sujeitos que poderão intervir nos
procedimentos de massa. No limite, como nos diz VASCO PEREIRA DA SILVA, poderá mesmo
vir a intervir no processo quem bem o desejar.
À partida, não aprofundando ainda a questão,
parece-me lógico que um indivíduo possa sempre, sem exepções, intervir num
processo multilateral. Tratando-se de um procedimento de número reduzido de
afectados essa questão nem será colocável, visto que os particulares que
intervêm no procedimento têm um direito subjectivo que lhes pertence a ser atacado.
A contenda mais discutível residirá nos procedimentos de ambientais de massa,
onde também aqui me parece que um particular terá sempre direito a intervir no
respectivo processo. Um procedimento ambiental de massa pressupõe que existe um
número elevado de sujeitos afectado por uma determinada decisão administrativa.
Quer isto dizer que essa decisão vai necessariamente originar um impacto
negativo no ambiente, pois os sujeitos são lesados porque o ambiente é
afectado. Seguindo este raciocínio, não vejo por que razão não poderá qualquer
cidadão português intervir num processo ambiental de massa. O ambiente pertence
a toda a comunidade, independentemente da área geográfica a que se consigna o
procedimento ambiental. Assim sendo, parece-me legítimo que alguém com
residência habitual em Lisboa possa intervir num processo que coloque em causa,
por exemplo, a integridade de uma zona de paisagem protegida situada na região
do Minho. Não faria sentido que só as pessoas afectadas numa determinada
circunferência geográfica pudessem intervir neste processo.
Ainda relativamente aos procedimentos
ambientais de massa, temos que os mesmos podem ser encontrados tanto no Código
de Procedimento Administrativo (doravante CPA) nos seus artigos 114º a 119º,
como na Lei de Acção Popular, presente na Lei nº 83/95, de 31 de Agosto.
Conjugando estas duas legislações entre si,
conseguimos verificar que podem intervir no procedimento de massa todos os cidadãos interessados (artigo
4º, nº 1 da Lei nº 83/95), as entidades
defensoras dos interesses que podem vir a ser afectados por aqueles planos ou
decisões (artigo 4º, nº 1 da Lei nº 83/95) e as autarquias locais em relação aos interesses de que sejam titulares
residentes na área da respectiva circunscrição (artigo 2º, nº 2 da Lei nº 83/95).
Para o nosso tema, releva especialmente o
primeiro caso supramencionado, no que toca à intervenção dos cidadãos
interessados. Quem são efectivamente esses cidadãos?
VASCO PEREIRA DA SILVA defende que o artigo
4º, nº 1 da Lei de Acção Popular deverá ser interpretado de um modo mais amplo,
caso contrário corremos o risco de entender que que somente os cidadãos
directamente atingidos poderão intervir no procedimento, ou por outras
palavras, somente os particulares com um direito subjectivo legalmente protegido
é que poderiam erguer a sua discordância perante a Administração. Vejo-me
obrigado a concordar com o douto Professor, por força de dois argumentos:
Em primeiro lugar, reitero a ideia já
defendida acima, de que qualquer cidadão português deverá ter todo o direito,
se assim o desejar, de intervir num procedimento ambiental de massa
independentemente do local geográfico do mesmo, conquanto que seja em
território português. Qualquer particular pode discordar quanto à construção de
uma fábrica ou destruição de uma zona protegida. Não faz sentido, a meu ver,
que um cidadão português, residente em Faro perca a sua voz relativamente a um
hipotético procedimento ambiental que incidisse na Serra do Gerês. É a
distância geográfica que impede que um cidadão possa fazer-se valer dos seus
direitos? E se assim fosse, qual seria o critério? Somente poderia intervir o
cidadão directamente afectado? Estando uma mais-valia ambiental em risco só
poderiam interceder no processo os particulares num raio de 5km2 ou
10km2? Não me parece que esta seja a solução correcta, especialmente
no que toca a um assunto tão delicado como este, onde todos os particulares
deveriam inclusivamente ser encorajados a participar.
Em segundo lugar, se o preceito legal
consagrado no artigo 4º, nº 1 da Lei de Acção Popular não fosse interpretado de
um ponto de vista amplo, então a sua razão de ser tornava-se bastante dúbia. Vejamos
porquê. Uma análise puramente objectivista leva-nos a entender «cidadãos
interessados» como os sujeitos que têm a titularidade de um direito subjectivo,
uma posição subjectiva de vantagem se preferirmos, que pretendem ver defendida.
Mas não é essa a função dos direitos de participação nos procedimentos
ambientais de reduzido número de afectados? Havendo uma interpretação
restringida haverá também uma confusão de esferas. A interpretação ampla deste
preceito torna-se assim estritamente necessária para que o mesmo faça sentido,
caso contrário não haveria uma substancial diferença prática entre os direitos
de participação de massa e de número reduzido de afectados.
Tendo que as ideias mencionadas supra dizem respeito aos direitos de
participação nos procedimentos ambientais de massa, observaremos agora de um
modo breve como é que funcionam as coisas nos procedimentos de reduzido número
de afectados. Como foi já mencionado, este tipo de procedimentos dizem respeito
aos sujeitos que desejam ver algum direito subjectivo defendido, visto que o
mesmo será lesado por força do procedimento ambiental em causa. Nestes casos a
componente subjectiva é predominante.
Como ponto de partida temos assim o artigo
53º do CPA, que determina quem terá legitimidade para intervir neste tipo de
procedimento. Podemos pois ver que poderão intervir os titulares de direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos
(artigo 53º, nº 1 do CPA), as associações
sem carácter político ou sindical que tenham por fim a defesa desses interesses
(artigo 53º, nº 1, última parte do CPA), os residentes
ma circunscrição em que se localize algum bem do domínio público afectado pela
acção da administração (artigo 53º, nº 2, alínea b) do CPA) e as associações dedicadas à defesa de interesses
difusos, assim como os respectivos órgãos autárquicos das respectivas áreas
(53º, nº 3 do CPA).
É perceptível a diferença entre os dois
regimes, especialmente se atentarmos na situação referente aos particulares,
que neste caso terão necessariamente de sentir um direito legalmente protegido
a ser lesado, de modo a poderem intervir no procedimento.
A meu ver, esta é a sistematização que faz
mais sentido. Temos assim dois tipos de procedimentos distintos. Num deles – os
procedimentos ambientais de massa – qualquer particular poderá intervir se
assim o desejar, bastando que exista uma determinada decisão da Administração
que possa colocar em causa o “bem-estar” do ambiente, se assim lhe quisermos
chamar. Independentemente da circunscrição geográfica a que o procedimento está
adstrito, parece-me que não tem lógica que um determinado sujeito não possa
intervir quanto a algo que lhe diz respeito (o ambiente é de todos nós),
somente porque mora longe do epicentro dessa decisão administrativa.
Por outro lado, temos depois os procedimentos
ambientais de número reduzido de afectados, onde aqui sim, temos já uma
circunscrição a limitar a possibilidade de intervenção dos particulares. E esta
solução faz sentido porque o que está em causa não é uma lesão generalizada no
“bem-estar” do ambiente, mas sim uma lesão específica e determinada num
reduzido número de particulares. Penso ser essa a fronteira delimitadora da
problemática em questão, saber se a decisão administrativa lesa o ambiente em
geral ou sujeitos privados em particular.
É certo que com esta perspectiva, a situação
terá de ser analisada como se de duas circunferências concêntricas se tratasse,
visto que um procedimento de massa engloba quase sempre em si mesmo um
procedimento de um número reduzido de afectados. É lógico que o que afecta os
habitantes de todo o território nacional afectará igualmente essa circunscrição
mais restrita pertencente a um número mais reduzido de particulares. Assim, só
poderemos usar o procedimento relativo a um número reduzido de afectados quando
forem apenas estes os lesados. A partir do momento em que o número de afectados
ultrapassar essa circunscrição e o próprio ambiente sofra danos visíveis, então
sim, teremos a legitimidade para intervir no processo, visto que já estamos
perante um procedimento ambiental de massa.
Resta acrescentar que os cidadãos terão
liberdade para participar no procedimento administrativo recorrendo ao
instituto da audiência dos interessados,
consagrado nos artigos 100º a 104º do CPA. Trata-se de um direito fundamental,
patente no artigo 267º/5 da Constituição da República Portuguesa. SÉRVULO
CORREIA indica que o nº 1 do artigo 100º do CPA «fala expressamente do direito de ser ouvido do interessado»[4]. Acrescenta também que a
audiência é realizada após a conclusão da instrução do processo. Note-se que se
trata de um momento fundamental do processo, pois se este não for respeitado temos
a nulidade do acto principal do processo (artigo 133º, nº 2, alínea d) do CPA).
Miguel Vieira,
Nº 16792
BIBLIOGRAFIA:
- AMARAL, FREITAS DO – O Novo Código de Procedimento
Administrativo, Centro de Estudos – Instituto Nacional de Administração, Lisboa,
1992;
- CORREIA, SÉRVULO – O Direito à Informação e os Direitos de
Participação dos Particulares e, em especial, na Formação da Decisão
Administrativa, in: Estudos Vários, Vol. 1. - Estudo nº 16,
publ. em: Legislação: cadernos de ciência da Legislação/ INA, nº 9/10
(Jan.-Jun. 1994);
- SILVA, VASCO PEREIRA
DA – Verde Cor de Direito: Lições de Direito do
Ambiente, Coimbra : Almedina, 2002;
[1] VASCO PEREIRA DA SILVA, «Em Busca do
Acto Administrativo Perdido».
[2] VASCO PEREIRA DA SILVA, «Verde Cor de
Direito: Lições de Direito do Ambiente».
[3] VASCO PEREIRA DA SILVA, «Verde Cor De
Direito: Lições de Direito do Ambiente».
[4] SÉRVULO CORREIA, «O Direito à
Informação e os Direitos de Participação dos Particulares no Procedimento e, em
Especial, na Formação da Decisão Administrativa».
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