sábado, 30 de março de 2013

Verdes são as penas - algumas notas sobre o Direito Penal do Ambiente e o crime de danos contra a natureza


«O Homem é aquele bicho de duas pernas que parece que não tem medo de nada e tem medo de tudo»
Aquilino Ribeiro, O romance da raposa

A tutela coerciva do Direito do Ambiente tem oscilado entre Direito Administrativo e Direito Penal. Glosando o poeta de Verdes são os campos, podemos afirmar que Verdes são (também) as penas, que o legislador (penal) consagrou para o que, de modo genérico, podemos designar como Direito Penal do Ambiente[1]; isto é que têm como objeto o bem jurídico(-penal) ambiente e o equilíbrio ecológico –testemunho do caráter pluridisciplinar do Direito do Ambiente, enquanto ramo autónomo composto por várias áreas do saber jurídico[2].

Embora se considere que o Direito Administrativo leva a vantagem na tutela coerciva do Ambiente[3], a intervenção do Direito Penal tem acompanhado a intervenção do Direito Administrativo. De resto, as transformações do chamado Direito contra-ordenacional aproximaram-no do Direito Penal e Processual Penal[4]. Em todo o caso, tanto um como outro partilham das mesmas finalidades preventivas.

Este interesse do legislador penal pelo ambiente está longe de ser uma particularidade doméstica[5]. Pelo contrário, corresponde a uma tendência global, fruto do desenvolvimento de um Direito Penal do risco, associado à prevenção contra fenómenos como o terrorismo e a criminalidade organizada, que despertam nos cidadãos um sentimento de insegurança. Nesse sentido o legislador penal reage com a criação de novos tipos criminais, baseados na proteção de novos bens jurídicos, e vai flexibilizado as regras de imputação[6].

1 – Diante do Direito Penal Clássico, protetor de bens jurídicos individuais, o Direito Penal do risco desafia o princípio da subsidiaridade do Direito Penal[7], que impõe à criminalização de condutas um critério de necessidade[8]. Isto é, postula esse critério, que a privação de liberdade apareça como o último dos expedientes da política criminal[9], o que lhe conferiu uma vocação tradicional para a sanção de comportamentos lesivos para um interesse fundamental da comunidade, qualificado como bem jurídico. Apelando à teoria do bem jurídico, fonte de legitimidade da intervenção penal, não se coloca em causa a dignidade penal do Ambiente. A defesa da natureza e do ambiente, bem como a preservação dos recursos naturais, é uma atribuição fundamental do Estado, de acordo com o artigo 9º, al. e) da CRP, e o potencial de risco de certos danos ambientais, reflete-se tanto sobre o bem Ambiente em si mesmo, como, de modo indireto, sobre a própria vida humana[10]. Demonstram-no exemplos como o desastre de Bhopal, na Índia, em 1984, a explosão nuclear de Chernobyl, na Ucrânia, em 1986, ou a explosão da plataforma Piper Alpha, no Mar do Norte, em 1988.

2 – Por outro lado, o Direito Penal do risco, operando por antecipação, desafia também o princípio da culpa[11], o que acentua o carácter preventivo da pena[12]. Este aspeto tem especial acuidade na tutela penal do Ambiente, mercê da influência do princípio da prevenção, o que, desde logo, indicia uma preferência pelo desvalor do perigo criado, em face do dano causado. Como afirma Vasco Pereira da Silva[13], o princípio da prevenção traz consigo a necessidade de adoção de medidas que evitem a criação de «efeitos danosos para o ambiente, e não a reação a tais lesões».

Tal leva o Direito Penal a reagir na medida do perigo. Nesse sentido (e de forma crítica) Jorge de Figueiredo Dias[14] afirma não ser isenta de dúvidas a legitimidade de delitos de perigo ambiental abstrato, ou seja, em que a criação de perigo não é elemento do tipo, e em que há quanto a eles uma presunção iuris et de iure. Concorde-se ou não com o autor, as suas críticas acabam por nos levar à defesa da centralidade do Direito Administrativo Sancionatório na tutela do Ambiente, já que este, naturalmente orientado para a prevenção, não se encontra limitado da mesma forma que o Direito Penal.

3 – Outra consequência reflete-se na estrutura do tipo penal ambiental e no problema da norma penal em branco, cuja compatibilidade com o princípio da legalidade sempre foi questionada. Se essa remissão implícita e não especificada para outras normas é, hoje, mais ou menos pacífica para a doutrina, parece bastante contestável o uso dessa técnica nas situações em que o desvalor é de perigo abstrato, pois que, não se verificando uma descrição suficientemente precisa da conduta, estaremos perante uma provável ofensa ao princípio da legalidade.

O crime de danos contra a natureza, previsto no artigo 278º do Código Penal, apresenta a estrutura típica de um crime de perigo abstrato, no qual deixa de ser necessária a demonstração de um nexo de causalidade de um facto em relação a um dano. É simultaneamente um crime de dano e um crime de resultado, que tem no seu tipo um delito de desobediência. De acordo com o tipo, as ações de «destruição de habitat» e «eliminação de exemplares» correspondem à ação típica; mas a ação só é típica se violar disposições legais, regulamentares ou obrigações impostas por autoridade administrativa competente. A ação de comercialização ou detenção para comercialização é um verdadeiro crime de dano, cujo objeto é uma espécie «protegida» nos termos das disposições legais e regulamentares, pelo que também neste caso surge, de forma implícita, uma ação de desobediência do autor[15].

O tipo subjetivo admite o dolo e a negligência. O agente que pensando que tem uma autorização (v.g. para a comercialização de certa espécie, protegida ou não) age em erro sobre o elemento normativo do tipo, que exclui o dolo, de acordo com o artigo 16º, n.º 1, do Código Penal. Como a norma em causa não tutela um bem jurídico passível de apropriação individual, é irrelevante o consentimento das pessoas atingidas pela ação danosa[16].

Quanto aos meios de autotutela é admissível a legítima defesa, nomeadamente contra às ações de pessoas coletivas públicas. Questão interessante é a da admissibilidade de atuação em estado de necessidade, nomeadamente numa situação de conflito entre o cumprimento de uma dada disposição legal, v.g. a criação de uma barreira jurídica e, consequentemente, a necessidade de obter uma autorização administrativa para o exercício de uma determinada indústria, com o argumento de que o agente tem a seu cargo um número elevado de trabalhadores. Para Paulo Pinto de Albuquerque[17] a existência de uma política pública de apoio económico às empresas e de apoios sociais aos desempregados afasta essa hipótese. Mas esta conclusão, posta nestes termos, corre o risco de ser simplista, pelo que julgamos ser dever do aplicador do Direito que, nessa situação (aliás bem plausível), faça uma ponderação do caso concreto, em que aos custos da lesão para o Ambiente, oponha os custos plausíveis do fecho da empresa (desde logo o despedimento de trabalhadores, mas também o incumprimento de direitos de crédito e de tributos fiscais) e admissibilidade da imposição legal à luz direito de livre iniciativa privada (artigo 61º, n.º1 da CRP), cujas limitações – em nome do direito ao Ambiente (cf. artigo 66º) deverão ser adequadas, necessárias e proporcionais. Estamos também num domínio em que se revela fundamental que a Administração, embora atuando ao abrigo do princípio do interesse público, aja de acordo com os ditames da boa fé, na relação com o particular. 



[1] Resultado da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, o qual introduziu no Código Penal português os crimes de danos contra a natureza (278º), poluição (279º) e poluição com perigo comum (280º); havendo também que notar a intervenção do Direito da União Europeia, nomeadamente da Diretiva 2008/99/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de novembro de 2008;
[2] Donde a alusão de Vasco Pereira da Silva, Verde cor de Direito, Coimbra: Almedina, 2002, p. 33, ao Direito do Ambiente como um «jardim de condomínio», formado por vários canteiros;
[3] Nesse sentido, Paulo de Sousa Mendes, Vale a pena um direito penal do ambiente? Lisboa: AAFDL, 2000, p. 139;
[4] O que Heloísa Oliveira, Tutela sancionatória de bens ambientais, in João Espírito Santo Noronha e Luís Silva Morais (dir.), Revista de concorrência & regulação, Ano II, n.º 5, janeiro – março de 2011, Coimbra: Almedina, p. 206, trata como um «problema identitário» do Direito Administrativo Sancionatório, que assim perde também a sua «eficácia»;
[5] De resto, o estudo da intervenção penal no Ambiente remonta à Conferência de Estocolmo, de 1972;
[6] Assim Germano Marques da Silva, Direito Penal Português. Parte Geral I – Introdução e teoria da lei penal, 3ª ed., Lisboa: Verbo, 2010, pp. 50-51, que reclama a manutenção dos princípios fundamentais do direito penal democrático; no mesmo sentido, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal. Parte Geral, I, Coimbra: Coimbra Editora, 2004, pp. 133 e ss.;
[7] Nesse domínio, Figueiredo Dias, Sobre o papel do Direito Penal na proteção do ambiente, in Revista de Direito e Economia, Ano IV, Coimbra: Almedina, 1978, pp. 3 e ss.;
[8] Artigo 18º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (adiante CRP);
[9] Sendo a definição desta uma competência do Governo, sem prejuízo do respeito pela reserva (relativa) de competência da Assembleia da República, como resulta do artigo 165º, n.º 1, al. c) da CRP;
[10] Com uma fundamentação próxima, José Arzamendi, Proteccion penal de la ordenacion del territorio y del ambiente, in Documentacion jurídica, 37-40, Madrid, 1983, p. 882 apud José Miguel Sardinha, Introdução ao Direito Penal Ecológico, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 48, Lisboa, 1988, p. 454;
[11] Jorge de Figueiredo Dias, Direito...cit., p. 132;
[12] O que se consubstancia num «desvalor» não só do «dano efetivamente causado», como do «perigo criado» com a ação típica, como afirma Heloísa Oliveira, Tutela…cit., p. 214; de resto, o aumento do número de tipificação de crimes de perigo é também uma manifestação do Direito Penal do risco, como afirma Jorge de Figueiredo Dias, O Direito Penal entre a sociedade industrial e a sociedade do risco, in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Rogério Soares, pp. 583 e ss.;
[13] Vasco Pereira da Silva, Verde…cit., pp. 66 e ss.; interessante é o problema suscitado por Maria da Glória F. P. D. Garcia, O lugar do Direito na proteção do ambiente, in Estudos de Direito do Ambiente  e de Direito do Urbanismo, in http://www.icjp.pt/publicacoes/1/731, pp. 27 e ss., ao constatar que a prevenção operada pelo Direito, assente em juízos de ordem técnica, comporta certas margens de erro (digamos assim), que poderão levar a que a própria norma protetora do Ambiente comporte, na verdade, um risco para este;
[14] Jorge de Figueiredo Dias, Sobre…cit., p. 17;
[15] Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª ed. Atualizada, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2010, p. 800;
[16] Idem, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário…cit., p. 801;
[17] Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário…cit., p. 802.

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