A tutela penal do bem jurídico
ambiental, entendido este como um bem jurídico unitário que se fracciona
noutros bens jurídicos de menor dimensão (as componentes ambientais e humanas,
conforme divisão feita pela Lei de Bases do Ambiente), é um assunto desde há
muito discutido. E inúmeras são as questões levantadas a este respeito: (i) o
tipo de crime - de desobediência, de dano ou de perigo - mais adequado à tutela
penal do ambiente; (ii) o modo de relacionamento entre a tutela penal e a
tutela contra-ordenacional; (iii) o lugar legal para a criminalização de
condutas anti-ambientais - o Código Penal ou legislação extravagante; (iv) a forma
como se pode penalizar uma conduta anti-ambiental, geralmente praticada por uma
pessoa colectiva, num sistema penal pensado e estruturado em função da
responsabilidade singular; (v) o meio processual mais adequado à efectivação da
responsabilidade (penal) por danos ambientais; (vi) o juízo a fazer sobre a
constitucionalidade das normas penais em branco em matéria ambiental, tendo em
conta os princípios da legalidade penal. Estas são apenas algumas das perguntas
que me ocorre agora colocar.
No entanto, e salvo alusões
pontuais a alguns dos aspectos referidos, não me poderei debruçar sobre todos
elas, não obstante o seu interesse dogmático, sob pena de tornar demasiado
extenso algo que se pretende sucinto. E, assim, optei por ficar no ponto de
partida: é geralmente aceite e reconhecido por toda a doutrina, portuguesa e
estrangeira, que o direito penal deve ser a ultima
ratio de protecção dos bens jurídicos, no sentido em que o direito penal só
deve tutelar bens que tenham dignidade penal, por um lado, e só deve intervir
quando haja necessidade de pena, assim sendo nos casos em que nenhum outro ramo
do Direito se mostre capaz de assegurar, com base na ideia de adequação e
proporcionalidade, a tutela do bem jurídico em causa, por outro. Neste sentido,
a pergunta a que procuro dar resposta, na esteira da questão já formulada por
PAULO SOUSA MENDES, é: vale a pena o
direito penal do ambiente?, ou, reformulando, de que cores se pinta o Direito Penal? Será, também ele, verde?
Importa
começar por esclarecer um ponto prévio. A tutela penal do ambiente pode ser
feita directa ou indirectamente. O legislador penal pode decidir criminalizar
condutas anti-ambientais apenas quando estas ameacem outros bens jurídicos, os
quais se aceita, sem qualquer dúvida, serem merecedores de tutela penal, como a
vida, a integridade física ou a saúde dos seres humanos – ou seja, tutela-se aqui
o bem jurídico ambiente de forma indirecta[1]. O que
está em causa na presente reflexão não é esta tutela indirecta: amplamente se
reconhece que, sendo perturbados bens jurídicos como os mencionados, através da
causação de danos ao ambiente, a conduta deverá ser considerada crime, na estrita
medida em que causa danos a esses bens jurídicos. No entanto, se aquilo que se
pretende é a realização de política ambiental, tendo o bem jurídico ambiente
dignidade penal per si e não apenas
quando se encontra em conexão com outros bens jurídicos de reconhecida relevância,
a tutela penal em causa seria já um tutela directa – penalização de condutas
anti-ambientais, por ser este, e apenas este, o bem jurídico que é lesado por
determinadas actuações. E é nesta perspectiva da tutela directa do ambiente que
procuro dar resposta à questão previamente formulada.
Foi
tardio o surgimento do Direito do Ambiente, pois tardio foi o início da
preocupação política do homem com o meio ambiente e a consciencialização de que
as suas actuações poderiam ter fortes impactos ambientais, causando danos
irreversíveis. Como se sabe, a questão ecológica surge apenas após a crise do
Estado Providência, nos anos 60/70[2], como
consequência da tomada de consciência de esgotabilidade dos recursos naturais,
sobretudo do petróleo, o denominado ouro negro
que move o mundo. Foi esta crise que demonstrou que o problema ambiental
demandava uma intervenção política do Estado, embora as primeiras manifestações
desta intervenção se tenham caracterizado pelo seu extremismo e
fundamentalismo. Ainda assim, ultrapassados estes fundamentalismos iniciais, o
problema ecológico deixou de pertencer a certas facções políticas ou sociais,
passando a ser um problema do poder político e ganhando uma dimensão individual
- consciencialização dos cidadãos - e uma dimensão institucional - surgimento
de associações, entidades administrativas, departamentos governamentais, entre
outros. A ameaça ecológica vem tomar dimensões desconhecidas, quer na sua
quantidade, quer na sua qualidade, o que vem forçar o legislador à adopção de
medidas de protecção do ambiente[3].
Esta necessidade de intervenção
política em matéria ambiental não se tornará relevante enquanto não for
efectiva[4], isto é,
enquanto não se generalizar na consciência dos destinatários das normas a sua
imperatividade e a necessidade do seu acatamento. E tal não se fará sem a
entrada em jogo de sanções, independentemente da configuração que estas venham
a assumir. Enquanto inicialmente, isto é, nos anos 60/70, as preocupações em
matéria ambiental se limitam a influenciar os discursos políticos, nos anos 80
assistem-se às primeiras intervenções do Direito Contra-Ordenacional, com o
surgimento dos princípios do crescimento sustentável e do poluidor-pagador, e,
por fim, nos anos 90, ocorrem as primeiras experiências de criminalização dos
comportamentos causadores de danos ambientais[5]. Entra
assim em jogo o problema da intervenção do direito penal em matéria ambiental,
como forma de garantir a vigência e efectiva aplicação das normas reguladoras
do ambiente.
Parece-me, no entanto, que a
compreensão da necessidade de intervenção do direito penal não se fará sem uma
primeira abordagem conceitual à ideia da «sociedade de risco», construída por
Ulrich Beck[6].
Esta sociedade caracteriza-se essencialmente por ter perdido a possibilidade de
cálculo dos seus riscos sociais[7], no
rápido processo de modernização e desenvolvimento técnico-científico de que foi
alvo. Se, por um lado, o desenvolvimento da técnica proporcionou um grande
aumento do bem-estar e da qualidade de vida individual, acompanhado do aumento
da dinâmica da economia, surgiram igualmente riscos nunca antes calculados, que
tornaram a sociedade uma ameaça para si própria[8], pelos
riscos imensuráveis que ela própria cria. Assim, se é verdade que o ser humano
se encontra mais seguro do que nunca, também toma consciência de que a
destruição de toda a vida na Terra é possível através de uma mera decisão
industrial.
É por força desta ideia de
«sociedade de risco» que entram em jogo os princípios da prevenção e da
precaução, enquanto princípios enformadores do Direito do Ambiente, que terão
posteriormente impacto na forma como se olha para o direito penal em matéria
ambiental, pois esta «sociedade de risco» reclama a criação de sistemas e de
normas que visem impedir que o risco se concretize no dano, proibindo-se
determinadas condutas. A fixação dessas condutas dependerá do princípio a
adoptar em matéria jurídico-ambiental. É de notar que, à semelhança do
defendido por PAULO SOUSA MENDES[9] e LEVI
FILHO[10], este
«risco» distancia-se da ideia de perigo, uma vez que o novo risco é sinónimo de
insegurança, é invisível e inimaginável, transfronteiriço e transgeracional,
o que irá dificultar muito mais a tarefa do legislador, do intérprete e do
aplicador do Direito em matéria ambiental.
O princípio da prevenção[11] parte
do entendimento de que a forma de evitar as lesões em matéria ambiental se
encontrará numa intervenção a priori da
Administração, que controle e torne efectiva a punição de todas as infracções
ambientais. Por força deste princípio, não deverá ser admitida ou autorizada a
prática de qualquer actividade humana que lese os bens ambientais de forma
grave e irreversível, pelo que, através de uma antecipação das condutas humanas
potencialmente perigosas para estes bens, não deverão ser admitidas aquelas que
revelem um nexo de causalidade entre a conduta e a lesão do bem. A tónica, em
vez de se encontrar na reparação dos danos - o que se verificou não ser
possível num grande número de casos - encontra-se precisamente na sua
prevenção. O princípio da precaução, embora tenha igualmente por base esta
ideia de antecipação das condutas que poderão provocar danos ambientais, vai
procurar evitar a causação de danos num momento cronologicamente anterior ao do
próprio princípio da prevenção e, por força da existência de um princípio de in dubio pro natura, não se exige aqui a
demonstração do nexo de causalidade. Há antes, parece-me, uma presunção
ilidível da existência desse nexo, bastando apenas que se verifique um perigo
ou risco numa determinada actividade[12]. À
semelhança do que defende a maioria da doutrina, parece-me que o princípio da
prevenção é aquele que se apresenta como verdadeiramente operacional em matéria
de protecção do ambiente - não deverão ser autorizadas ou admitidas actividades
que possam comprometer de forma dificilmente reversível a qualidade ambiental,
mas apenas quando os danos resultantes dessas actividades sejam minimamente
previsíveis e seja possível a demonstração do nexo de causalidade existente
entre a actividade e os danos. O princípio da precaução (embora lhe reconheça
do mérito de poder conduzir a uma maior protecção do ambiente, em virtude do in dubio pro natura e da inversão do
ónus da prova quanto ao nexo de causalidade por força da presunção que ele
estabelece) poderá, quanto a mim, facilmente cair num fundamentalismo ambiental
não compatível com o desenvolvimento económico desejável a uma sociedade
moderna. Pois, na esteira do que escreve PAULO SOUSA MENDES[13], se é
possível a existência de um cenário em que o funcionamento do mercado e a
prossecução da iniciativa económica privada são compatíveis com a preservação
do ambiente, a degradação ainda é tida, nalguns casos, como um “mal menor”,
inevitável, uma consequência normal
do desenvolvimento económico. Desta feita, não me parece que o princípio
norteador em matéria de Direito do Ambiente possa ser tal que conduza a uma
paralisação da actividade económica, não se permitindo actividades que, embora
causadoras de danos ambientais, sejam essenciais numa sociedade desenvolvida ou
em desenvolvimento. Aquilo que se deverá pretender é, sim, um desenvolvimento
sustentável[14]
– aceitando-se como natural a ocorrência de certos danos ao ambiente, deverá
conseguir-se atingir um ponto de equilíbrio em que o desenvolvimento económico
não crie danos tais que comprometam a possibilidade de esse desenvolvimento se
continuar a dar nas gerações vindouras, pelo que, ao legislador, cabe encontrar
o ponto de equilíbrio entre o progresso
económico e social e o direito fundamental à manutenção e restauração de um
ambiente são[15].
Postas estas considerações, o que
importa saber é se o direito penal é um meio próprio e a adequado para dar
resposta às necessidades impostas pelo princípio da prevenção em matéria
ambiental, ou seja, se é ou não possível que, através do direito penal, se
previnam danos ambientais dificilmente reparáveis, criminalizando-se as
condutas que, com um nexo de causalidade carente de demonstração, possam a eles
levar.
Em primeiro lugar, importa ter
presente que o direito penal, sendo o mais severo mecanismo sancionatório de
que o Estado dispõe, só deverá intervir quando o bem a proteger revele dignidade
penal e quando as sanções previstas se revelem como sendo as necessárias e
adequadas para evitar as lesões a esses bens. Este entendimento tem base
constitucional, nomeadamente no Art. 18º, nº 2 CRP, preceito que não admite restrições
a direitos, liberdades e garantias (no caso de aplicação de uma sanção penal,
nomeadamente da pena de prisão efectiva, está desde logo em causa o direito
fundamental à liberdade), fora do estritamente necessário para a salvaguarda de
outros direitos ou interesses legalmente protegidos. Nesta senda, cumpre então
averiguar se o ambiente se pode considerar um direito ou interesse legalmente
protegido na acepção da Constituição, de forma a saber se, por motivo da sua
salvaguarda, poderão ser impostas sanções com carácter penal.
A meu ver, e parecendo-me ter sido
esta igualmente a visão do legislador penal, aquando da consagração, com a
Reforma ao Código Penal em 1995[16], dos
crimes previstos nos Arts. 279º, 280º e 281º do Código Penal, o bem jurídico
ambiente tem efectivamente dignidade penal. O primeiro argumento a favor desta
tese tem natureza formal, embora com assento constitucional. De facto, o Art.
66º CRP confere uma tutela jurídica expressa ao ambiente. O conceito utilizado
pela Constituição é um conceito amplo, que permite enquadrar todos os sistemas físicos, químicos e biológicos,
traduzindo igualmente o entendimento de que estes sistemas produzem efeitos, directa ou indirectamente, sobre unidades
existenciais vivas e sobre a qualidade de vida do homem[17].
Assim, embora apareça ligado à vida enquanto valor mais elevado, o ambiente é
um valor autónomo[18],
susceptível de tutela jurídica directa. No entanto, não pode ser este o
argumento determinante para que se confira dignidade penal ao ambiente, pois a
consagração na Constituição formal não é suficiente. Importa, por um lado,
saber até que ponto podemos falar de um direito fundamental relativamente ao
ambiente e, por outro, saber se há um consenso amplo sobre a dignidade punitiva
deste bem jurídico.
Quanto ao primeiro aspecto, e sem
me alongar sobre uma questão que está longe de ser consensual, por escapar ao
tema da presente reflexão, limito-me a confessar a minha adesão à tese de VASCO
PEREIRA DA SILVA[19],
entendendo que há, de facto, no sistema jurídico português, um direito
fundamental concedido ao ambiente, que radica na dignidade da pessoa humana,
valor fundamental da nossa Constituição. Esse direito é, agora, não apenas
formal como igualmente material. Convém referir que faço alusão a este ponto
por duas razões: por um lado, para contornar críticas de formalismo; por outro,
para esclarecer que o que é relevante em termos de dignidade penal dos bens
jurídicos não se limita ao que está escrito no texto constitucional, abarcando
antes a ordem axiológica constitucional, embora, no caso concreto, se encontre
a correspondência directa por via da consagração do direito ao ambiente no Art.
66º CRP. Quanto ao segundo aspecto, FERNANDA PALMA[20] afirma
que a essencialidade do bem, ou seja, a dignidade penal do mesmo, tem o seu
fundamento ideológico no contrato social. E foi esta ideia que o legislador
penal pretendeu deixar clara aquando da criminalização de condutas
anti-ambientais, ao considerar que a matéria ambiental era matéria cuja
dignidade penal já não se contestava.
Ainda assim, como já referi e nos
termos do que enuncia PAULO SOUSA MENDES[21],
tendo-se por aceite a dignidade penal do bem jurídico, que, a meu ver, não me
parece ser contestável, tal não basta para justificar a criminalização dos danos
contra o ambiente, pois o facto não será possível sem a consideração dos
princípios da necessidade e adequação penal.
O que impõe saber neste ponto da
presente reflexão não é se o ambiente é um bem jurídico que merece defesa. É
indiscutível que, à luz das várias lesões de que tem sido alvo nas últimas
décadas, se torna essencial a protecção jurídica do ambiente, não só através de
legislação que regule as condutas a adoptar pelos cidadãos e pelo Estado em
matéria ambiental, como também através dos mecanismos sancionatórios que visam
garantir a efectividade dessas prescrições. No entanto, o que resta saber é se
o direito penal é o mecanismo necessário - se só e apenas através do direito
penal se consegue garantir a protecção do bem jurídico ambiental – e se as
sanções do direito penal, isto é, as penas e as multas, são as mais adequadas à
prevenção de danos ambientais.
Por mais essencial que o bem
jurídico seja, não se pode cair na tentação de criminalizar as condutas que
causem danos a esse bem se o direito penal não se afigurar como o meio
necessário e adequado[22]. No
entendimento de FIGUEIREDO DIAS[23], um
meio de vida são é um bem jurídico que vai reclamar a protecção do direito
penal a nível imediato, pois só assim se garante a plena realização da
personalidade do homem, o que é igualmente um direito fundamental nos termos do
Art. 26º CRP. Assim, na perspectiva deste autor, a intervenção do direito penal
em matéria ambiental encontra-se justificada, por força da especial
preponderância do bem jurídico em causa. Salvo o devido respeito, não concordo
com esta posição, pois ela assenta apenas na dignidade penal do bem ambiente,
cuja validade não se contesta, mas deixa por explicar a necessidade e adequação
do direito penal para aplicar sanções em matéria ambiental e, a meu ver, é aí
que se encontra a resolução do problema para a questão a que procuro dar
resposta.
Na verdade, não me parece que nem a
necessidade nem a adequação estejam aqui verificadas. Dessa forma, e por força da
aplicação do princípio da subsidiariedade do direito penal, este deverá recuar,
deixando assim espaço à intervenção de outros ramos sancionatórios da ciência
jurídica.
Em termos de necessidade,
afigura-se-me que, embora careça de evolução, o bem jurídico ambiente pode, e
deve, ser tutelado de forma suficiente por outros meios. Como já referi, a pena
privativa da liberdade não terá aplicação imediata nos casos em que a
responsabilidade penal tiver que ser imputada a pessoas colectivas, pelo que
apenas o pagamento de multas se pode afigurar como viável. No entanto, se
optarmos por um ramo sancionatório de Direito Administrativo, encontraremos um
sem número de sanções possíveis, que não apenas a aplicação de coimas, como sejam
a suspensão de actividade de empresas, ou mesmo o seu encerramento, a proibição
do exercício de determinadas profissões[24], entre
outras, que se demonstram como mais adequadas para tutela do bem jurídico em
causa. No seu estado actual, a verdade é que o direito penal do ambiente
praticamente não tem significado[25], e que
o Direito Contra-Ordenacional aparece como um ramo melhor preparado para dar
respostas aos problemas sobre os quais me debruço, embora careça de atenção.
Tal como refere FREDERICO COSTA PINTO[26], este
ramo caracteriza-se por uma maior celeridade e uma maior especialização, por
força de uma acessoriedade administrativa verificada no direito penal do
ambiente e, por outro lado, conhece a possibilidade de responsabilização de
pessoas colectivas, que é um problema com o qual o direito penal há muito se
defronta.
Em termos de adequação, há que
reconhecer que dificilmente, enquanto não se alterar o estádio do direito penal
e do direito processual penal, se conseguirá conferir eficácia às normas penais
que criminalizam condutas anti-ambientais: a nível penal, por força do
paradigma da responsabilidade penal singular, entre outras questões já aludidas
ao longo do presente texto; a nível processual, devido à grande dificuldade de
prova do nexo de causalidade, bem como de matéria de facto que se revela, a
grande parte das vezes, ser de uma complexidade técnico-científica
elevadíssima. Há ainda que ter em conta que, em matérias tão transversais como
o Direito do Ambiente[27], a
acessoriedade administrativa é um facto a ter em conta, não dispensando o
direito penal, numa área como esta, de recorrer à figura da «norma penal em
branco», cuja constitucionalidade poderá ser questionável em matérias
ambientais quando parte do ilícito penal é definido pela Administração[28] [29]. Como
afirma PAULO SOUSA MENDES[30], “a
tutela penal deve ceder perante considerações de fatalidade”, sendo esta
fatalidade o reconhecimento da inadequação do direito penal e do direito
processual penal para intervirem nesta matéria, o que facilmente se demonstra,
na prática, pelo défice de execução a que alude WINFRIED HASSEMER[31], embora
referindo-se à situação alemã. Por razões de semelhança, iguais considerações
se fazem relativamente à situação portuguesa[32].
Em consequência, impõe-se aqui a
conclusão que é igualmente retirada por HELOÍSA OLIVEIRA, ao afirmar que se
reconhece e aceita a dignidade penal do bem ambiente, mas fica, a maioria das
vezes, por demonstrar que o princípio da carência da tutela penal está
preenchido. Ora, a meu ver, não está.
Ainda assim não foi este o
entendimento do legislador, uma vez que procedeu à criminalização de
determinadas condutas anti-ambientais. Surgiu o chamado, nas palavras de PAULO
SOUSA MENDES, as quais me parecem adequadas, «direito penal do risco», ou seja,
o direito penal de uma sociedade de risco. Este direito penal caracteriza-se
por uma flexibilização da estrutura dos tipos incriminadores, pois, para além
das dificuldades inerentes ao que concerne a responsabilização penal das
pessoas colectivas, que são as principais responsáveis em matéria de danos
ambientais, responsabilização essa sobre a qual não me debruçarei aqui por
escapar ao tema, surgem outras dificuldades, especialmente relacionadas com a
prova do nexo de causalidade[33]
estabelecido entre a acção e o dano. E, a bem da verdade, o que tem prejudicado
o ambiente ao longo do tempo não são acções isoladas e o seu resultado
concreto, mas sim acções sucessivas, pelo que a criminalização de condutas
anti-ambientais deve ter ainda em conta este último aspecto - o que está em causa não é tanto o ter
causado um certo resultado concreto, mas o poder estar a contribuir para a
deterioração do ambiente, a prazo incerto[34].
E estas dificuldades, se bem que tidas em conta aquando da criminalização das
referidas condutas, não deixam de se notar quando, na prática, é quase
impossível accionar os mecanismos neles previstos, aplicando sanções penais a
quem efectivamente causa danos ao ambiente. Por duas ordens de razão, para além
das já aludidas: uma que se prende com a necessidade de desobediência a uma
intervenção concreta da Administração, presente, a título de exemplo, no Art.
279º CP, o que vai deixar de fora todos aqueles crimes que se verifiquem em
zonas nas quais não existe qualquer intervenção que regule os comportamentos
ambientais dos sujeitos[35]; a
outra relacionada com a dificuldade de prova dos nexos de causalidade
exigíveis, sendo muito mais fácil provar que houve um dano contra o ambiente por
parte daquele que deixou o lixo no bosque depois de um piquenique do que por
parte da empresa que, ao longo de vários anos, deitou resíduos para um rio, os
quais causaram a morte de espécies animais e vegetais[36].
Cumpre ainda fazer uma alusão ao
«direito penal simbólico». Este caracteriza-se por não ter como finalidade a
protecção efectiva de bens jurídicos, mas apenas obedecer a propósitos de
propaganda política, nomeadamente proceder a uma espécie de “silenciamento” de
vozes reclamantes de tutela para o ambiente[37]. Todo o
direito penal simbólico é socialmente inútil, em nada traduzindo, em termos de
prossecução dos fins das penas, quer os preventivos gerais, quer preventivos
especiais[38].
O grande inconveniente do direito penal simbólico prende-se com os seus efeitos
contraproducentes, pois, recorrendo-se a este com frequência, o défice de
execução irá criar uma convicção de impunidade[39],
podendo levar a que aqueles que cumprem as normas deixem de o fazer[40], um
pouco segundo a senha de «Pedro e o lobo», pois este direito penal é, apenas e
só, simbólico, logo não procura uma
efectiva protecção de bens jurídicos, mas tão só a criação de uma ilusão de
segurança e de um sentimento de confiança no ordenamento e nas suas
instituições[41].
Terminada a exposição e apresentada
a minha opinião sobre a validade do direito penal do ambiente, cumpre-me agora concluir,
tentando descortinar quais poderão ser as vias sancionatórias possíveis em
matéria ambiental. Já anteriormente aludi a uma delas: o Direito Sancionatório
Administrativo, isto é, e existência de contra-ordenações, não só realizadas através
da aplicação de coimas, mas de outras sanções juridicamente possíveis de
existir neste ramo, o que implica o seu aperfeiçoamento por forma a que se consiga
dar uma resposta satisfatória às complexas questões que se levantam. Do ponto
de vista do princípio da prevenção, também o Direito Administrativo se
apresenta como um ramo mais vocacionado para tutela do bem jurídico ambiente do
que o direito penal[42]. PAULO
SOUSA MENDES[43]
defende ainda a necessidade de garantir a efectividade do seguro obrigatório,
previsto no Art. 43º da Lei de Bases do Ambiente, o que seria um poderoso
instrumento de garantia da função de reparação de danos, aludindo ainda o autor
à possibilidade de instituição de fundos de indemnização colectivos, tal como
WINFRIED HASSEMER[44] igualmente
refere. Este último vai ainda mais longe, ao postular a criação de um novo ramo
do Direito, a chamar-se Direito de Intervenção,
que teria carácter preventivo, permitiria dar resposta ao problema da
responsabilidade das pessoas colectivas, conteria sanções inovadoras e estaria
preparado para apresentar soluções de problemas globais e não apenas de problemas
localizados no tempo e no espaço. Apesar de aliciante, parece-me ser esta uma
proposta de difícil concretização prática, pelo que mantenho a opinião
anteriormente defendida quanto à eficácia teórica e dogmática do Direito Contra-Ordenacional
para dar resposta às sanções a aplicar em matéria ambiental, restando-me apenas
esperar que a prática também o demonstre.
Ao direito penal caberá apenas dar
resposta a problemas que, hoje em dia, se encontram sem solução. São eles: as
actividades clandestinas causadoras de danos ambientais e a criminalidade
ambiental transnacional e organizada[45].
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[1]
DIAS, Jorge de Figueiredo (1978); «Sobre o papel do direito penal na protecção
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Economia, pp. 2 a 19.
[2]
SILVA, Vasco Pereira da (2005), Verde Cor
de Direito – Lições de Direito de
Ambiente, pp. 17 a 20.
[3]
RODRIGUES, Anabela Miranda (1995); «Os crimes contra o ambiente no código penal
português revisto», in Lusíada – Revista
de Ciência e Cultura, pp. 301 a 315. Note-se que esta necessidade de
intervenção legislativa fez com que, nos dias de hoje, se assista a uma
autêntica inundação de normas, o que, numa área tão complexa como o Direito do
Ambiente, gera uma confusão normativa que, desde logo, dificulta a efectividade
das normas.
[4]
OLIVEIRA, Heloísa (2008-09); Eficácia e
Adequação na Tutela Sancionatória dos Bens Ambientais.
[5]
PINTO, Frederico de Lacerda da Costa (2000); «Sentido e limites da protecção
penal do ambiente», in Revista Portuguesa
de Ciência Criminal, pp. 372.
[6]
Este conceito de sociedade de risco foi apresentado pelo sociólogo Ulrich Beck,
em 1986, numa monografia intitulada: A
sociedade do risco, rumo a uma nova modernidade.
[7]
OLIVEIRA, Heloísa; ob. cit.
[8]
FILHO, Levi Sottomaior de Souza (2008-09); O
Direito Penal Simbólico na Sociedade de Risco.
[9]
MENDES, Paulo Sousa (1995); «Vale a pena o Direito penal do ambiente?», in Lusíada – Revista de Ciência e Cultura,
pp. 334 a 393.
[10]
FILHO, Levi Sottomaior de Souza (2008-09); O
Direito Penal Simbólico na Sociedade de Risco; pp. 10.
[11]
OLIVEIRA, Heloísa (2008-09); Eficácia e
Adequação na Tutela Sancionatória dos Bens Ambientais - Seminário de
Direito Penal e Contra-ordenacional do Ambiente.
[12]
OLIVEIRA, Heloísa (2008-09); Eficácia e
Adequação na Tutela Sancionatória dos Bens Ambientais - Seminário de
Direito Penal e Contra-ordenacional do Ambiente.
[13]
MENDES, Paulo Sousa (1995); «Vale a pena o Direito penal do ambiente?», in Lusíada – Revista de Ciência e Cultura,
pp. 334 e ss.
[14]
MENDES, Paulo Sousa; ob. cit., pp. 335 e ss.
[15]
RODRIGUES, Anabela Miranda (1995); «Os crimes contra o ambiente no código penal
português revisto», in Lusíada – Revista
de Ciência e Cultura, pp. 301 a 315.
[16]
PALMA, Maria Fernanda (2004); «Acerca do estado actual do Direito Penal do
Ambiente», in O Direito, pp. 77.
[17]
CANOTILHO, Gomes; e MOREIRA, Vital (2007); Constituição
da República Portuguesa Anotada, Volume I, pp. 347.
[18]
PINTO, Frederico de Lacerda da Costa (2000); «Sentido e limites da protecção
penal do ambiente», in Revista Portuguesa
de Ciência Criminal, pp. 371 a 387.
[19]
Neste sentido, veja-se SILVA, Vasco Pereira da (2005); Verde Cor de Direito - Lições
de Direito do Ambiente, pp. 28 e ss.
[20]
PALMA, Maria Fernanda (1995); «Novas formas de criminalidade: o problema do
direito penal do ambiente», in Estudos
Comemorativos do 150º Aniversário do Tribunal da Boa-Hora, pp. 201.
[21]
MENDES, Paulo Sousa (1995); «Vale a pena o Direito penal do ambiente?», in Lusíada – Revista de Ciência e Cultura,
pp. 334 a 393.
[22]
Em sentido semelhante, veja-se MENDES, Paulo Sousa; op. cit.
[23]
DIAS, Jorge de Figueiredo (1978); «Sobre o papel do direito penal na protecção
do ambiente», in Revista de Direito e
Economia; pp. 2 a 19.
[24]
HASSEMER, Winfried (1995); «A preservação do meio ambiente através do direito
penal», in Lusíada – Revista de Ciência e
Cultura, pp. 319 a 329.
[25]
PALMA, Maria Fernanda (2004); «Acerca do estado actual do Direito Penal do
Ambiente», in O Direito, pp. 85.
[26]
PINTO, Frederico de Lacerda da Costa (2000); «Sentido e limites da protecção
penal do ambiente», in Revista Portuguesa
de Ciência Criminal, pp. 371 a 387.
[27]
OLIVEIRA, Heloísa (2008-09); Eficácia e
Adequação na Tutela Sancionatória dos Bens Ambientais - Seminário de
Direito Penal e Contra-ordenacional do Ambiente. A autora afirma que o Direito
do Ambiente é, indiscutivelmente, uma área multidisplinar, tocando em ramos
jurídicos que vão desde o Direito da União Europeia até ao Direito Civil,
passando pelo Direito Constitucional, Fiscal, Económico, Processual, Penal e,
sobretudo, Administrativo.
[28]
HASSEMER, Winfried (1995); «A preservação do meio ambiente através do direito
penal», in Lusíada – Revista de Ciência e
Cultura, pp. 319 a 329.
[29]
Para VASCO PEREIRA DA SILVA, nem a qualificação dos crimes ecológicos como
crimes de desobediência, nem o grau de incerteza do resultado é suficiente para
que se considerem as normas penais existentes como normas penais em branco. A
meu ver, não só podem ser caracterizadas como normas penais em branco, que,
dentro de certos limites, poderão ser conforme às exigências da Constituição,
como não é claro que as normas do Código Penal respeitem esses limites. Neste
sentido, veja-se SILVA, Vasco Pereira da (2009); «Breve nota sobre o Direito
sancionatório do Ambiente», in Direito
Sancionatório das Autoridades Reguladoras, pp. 271 e ss.
[30]
MENDES, Paulo Sousa (1995); «Vale a pena o Direito penal do ambiente?», in Lusíada – Revista de Ciência e Cultura,
pp. 334 a 393.
[31]
HASSEMER, Winfried (1995); «A preservação do meio ambiente através do direito
penal», in Lusíada – Revista de Ciência e
Cultura, 1995, pp. 319 a 329.
[32]
Tal como refere PALMA, Maria Fernanda (2004); «Acerca do estado actual do
Direito Penal do Ambiente», in O Direito,
pp. 77 a 86, a jurisprudência dos tribunais superiores, nos cinco anos
seguintes à Reforma do Código Penal que introduziu os crimes em matéria ambiental,
regista um pequeno número de caso de crimes nesta matéria, o que leva à
afirmação por parte da autora de que o Direito Penal do ambiente em Portugal é
remanescente e dependente de decisão administrativa.
[33]
MENDES, Paulo Sousa (1995); «Vale a pena o Direito penal do ambiente?», in Lusíada – Revista de Ciência e Cultura, pp. 334 a 393.
[34]
MENDES, Paulo Sousa; ob. cit. pp. 357.
[35]
RODRIGUES, Anabela Miranda (1995); «Os crimes contra o ambiente no código penal
português revisto», in Lusíada – Revista
de Ciência e Cultura, pp. 301 a 315.
[36]
Neste sentido, veja-se MENDES, Paulo Sousa (1995); «Vale a pena o Direito penal
do ambiente?», in Lusíada – Revista de
Ciência e Cultura, pp. 334 a 393.
[37]
Esta situação verificou-se na República Federal Alemã, com o surgimento do
partido político Os Verdes, na
sequência do caso de Seveso e na iminência de catástrofe na central nuclear de
Harrisburg. Como estes procuraram conquistar o eleitorado através de uma
promessa de dureza legislativa em matéria ecológica, tal motivou a introdução
apressada de crimes contra o ambiente no Código Penal Alemão.
[38]
MENDES, Paulo Sousa (1995); «Vale a pena o Direito penal do ambiente?», in Lusíada – Revista de Ciência e Cultura,
pp. 334 a 393.
[39]
OLIVEIRA, Heloísa (2008-09); Eficácia e
Adequação na Tutela Sancionatória dos Bens Ambientais - Seminário de
Direito Penal e Contra-ordenacional do Ambiente.
[40]
MENDES, Paulo Sousa; ob. cit.
[41]
FILHO, Levi Sottomaior de Souza (2008-09); O
Direito Penal Simbólico na Sociedade de Risco.
[42]
OLIVEIRA, Heloísa; ob. cit.
[43]
MENDES, Paulo Sousa; ob. cit.
[44]
HASSEMER, Winfried (1995); «A preservação do meio ambiente através do direito
penal», in Lusíada – Revista de Ciência e
Cultura, pp. 319 a 329.
[45]
OLIVEIRA, Heloísa (2008-09); Eficácia e
Adequação na Tutela Sancionatória dos Bens Ambientais - Seminário de
Direito Penal e Contra-ordenacional do Ambiente.
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