segunda-feira, 25 de março de 2013

Chover no molhado: Direito do Ambiente um Direito Fundamental


       A recepção da tutela constitucional ambiental surge em Portugal na Constituição de 1976. Com efeito, e como ressalva Jorge Miranda[1], já na Constituição de 1822 o legislador preceituou, cometendo às Câmaras Municipais a tarefa de promover a plantação de árvores nos baldios e nas terras dos concelhos, contudo tal normativo parece apontar mais para um incentivo ao desenvolvimento rural do que propriamente para uma tutela ambiental.
Foi na Conferência das Nações Unidas ocorrida em Estocolmo, em Junho de 1972, através da Declaração do Meio Ambiente que este foi reconhecido como um novo direito fundamental. A referida Declaração estabelece vinte e seis princípios que constituem prolongamento da Declaração Universal dos Direitos do Homem e que acabaram por influenciar as legislações no que toca à matéria ambiental.
Os textos constitucionais, de uma maneira geral, foram contagiados pela euforia internacional de consagração de um direito ao ambiente.
Existindo uma panóplia de Estados que conferem ao direito ao ambiente o estatuto de direito fundamental, Estados cujas leis fundamentais caracterizam a protecção do ambiente como tarefa pública. Tomemos como exemplo o caso Alemão, que desde 1994, fruto de uma revisão constitucional acolheu na Lei Fundamental, uma norma de protecção do ambiente.

        Consagrado no art. 66.º, CRP numa dupla perspectiva  enquanto tarefa fundamental do Estado, numa dimensão objectiva, e enquanto direito fundamental, numa dimensão subjectiva  isto é, no entender de PEREIRA DA SILVA, uma “dupla natureza” (usando a expressão de HESSE), tanto “se configuram como estruturas objectivas da comunidade, pois compreendem também uma dimensão positiva, enquanto conjunto de valores e princípios conformadores de toda a ordem jurídica” que requerem uma actuação por parte dos poderes públicos, bem como direitos subjectivos  na medida em que possuem uma dimensão negativa que consiste na não interferência de entidades públicas susceptíveis de prejudicar os direitos dos cidadãos.
Na sua dimensão negativa, o direito ao ambiente é seguramente um dos direitos fundamentais de natureza análoga a que se refere o art. 17º, CRP, sendo-lhe, portanto, aplicável, o disposto no seu art. 18º.
Segundo a teoria antropocêntrica, a defesa do ambiente é feita com o objectivo principal – ou mesmo único – de defender a vida humana. Negando qualquer autonomia aos bens naturais, sendo alvo de protecção apenas aqueles que tenham uma utilidade para o Homem. Está-se assim perante uma visão utilitarista em que se conservam apenas aqueles recursos que possam ser aproveitados pelo Homem e que tenham um valor económico aferido em função das necessidades e exigências humanas. Isto é, «o ambiente é um valor em si na medida em que também o é para a manutenção da existência e alargamento da felicidade dos seres humanos»[2].
Sendo de acordo com o art. 9º, al. d), CRP uma tarefa fundamental do Estado para a promoção da “qualidade de vida do povo” a “ efectivação dos direitos (…) ambientais”, justificando tal ligação entre o Homem e o Ambiente que este seja considerado um direito fundamental. Na esteira de MARIA DA GLÓRIA GRAÇA, não fazendo sentido a consagração deste direito fundamental a um ambiente humano, sadio e ecologicamente equilibrado numa visão ecocêntrica, a qual reconhece um valor intrínseco aos bens naturais, centrando-se a sua importância não na utilidade que pode ser retirada pelo Homem, mas sim na estreitíssima ligação que existe entre a subsistência do Homem (mas não só deste) e das outras espécies e a manutenção de um ambiente natural sadio. A Natureza teria assim um valor autónomo, valendo por si e sendo a sua tutela independente de se ter verificado um dano na esfera jurídica de certo indivíduo. Sendo ainda de justificar a fundamentalidade do ambiente com o princípio da solidariedade entre gerações, alargando assim intemporalmente a qualidade de vida humana. A estreita ligação entre o ambiente e a qualidade de vida, levam a uma responsabilidade inter-geracional, isto é, obriga a considerar o bem-estar de gerações futuras, não lhes eliminando a possibilidade de gozo da biodiversidade.
A questão de saber se o direito ao ambiente é ou não um direito fundamental gira em torno da distinção feita, pela doutrina e jurisprudência nacionais, da classificação e do regime dos direitos, liberdades e garantias e dos direitos económicos, sociais e culturais, não obstante o artigo 66º da CRP que, apesar de prever que o direito ao ambiente é um direito fundamental, não é suficientemente esclarecedor quanto a saber se “se está ainda perante um “verdadeiro” direito fundamental ou se se trata antes de uma tarefa estadual “disfarçada”, em razão da necessidade de intervenção estadual de que depende a concretização da disposição constitucional”[3].

       Inúmeros autores recusam-se a identificar o direito ao ambiente como um direito fundamental, pelo facto de defenderem que se trata de uma tarefa estadual disfarçada. Tal pensamento advém da constante comparação que muitos autores fazem com os chamados “direitos fundamentais de primeira geração”, que nasceram no Estado Liberal, com o constitucionalismo liberal, da necessidade premente que existia de fazer face ao Estado. Esses direitos possuíam um conteúdo meramente negativo, correspondente a um dever de abstenção das entidades públicas. Ou seja, nesse caso, o Estado tem o dever de se abster perante o particular, de modo a não lhe causar danos. Muitos consideram que estes direitos não compreendem a vertente positiva típica dos direitos de segunda e terceira geração. Vertente esta que se traduz na intervenção do Estado de modo a que os particulares possam gozar plenamente dos direitos constituídos (nomeadamente direitos sociais).

        O constitucionalista RUI MEDEIROS reconhece, natureza de direito, liberdade e garantia ao direito de acção popular para intentar acções visando prevenir ou ressarcir condutas lesivas do ambiente (art. 52º/3, CRP), pronunciando-se no sentido do carácter social do direito ao ambiente. Defendendo que o art. 66º, CRP “contém, basicamente, uma mera imposição de legislação, cabendo ao legislador, em face da realidade constitucional, promover a sua concretização”[4].
Com uma posição de negação da fundamentalidade do direito do ambiente, encontram-se REBELO DE SOUSA e MELO ALEXANDRINO, negando a sua vertente negativa. Todavia, afirmam a sua natureza positiva, social-prestacional [5].
Para JORGE MIRANDA, trata-se de um dever fundamental, considerando o direito ao ambiente um direito complexo, de estrutura bifronte, que fica sujeito “ora ao regime dos direitos, liberdades e garantias (art. 17º, CRP)”, por ser um direito de natureza análoga, “ora ao dos direitos económicos, sociais e culturais”. Ficando sujeito ao primeiro regime quando se mostre um direito de defesa das pessoas perante os poderes públicos ou sociais. Contrariamente, ficará sujeito ao segundo regime uma vez que é um “direito a prestações positivas do Estado e da sociedade, um direito a que seja criado um ‘ambiente de vida humana, sadio e ecologicamente equilibrado’, ex vi art. 66.º/1, CRP) ”.
Por seu turno, COLAÇO ANTUNES apoia-se na vertente colectiva do bem ambiente, para o classificar como interesse difuso fundamental. Uma vez que este não satisfaz necessidades individuais, mas sim colectivas  isto é, não se presta a uma função de troca e de alienação, mas a uma função de fruição colectiva.

      O partidário mais acérrimo da tese do direito ao ambiente como direito subjectivo fundamental é PEREIRA DA SILVA, não apenas em razão da consagração constitucional de uma noção ampla de direitos fundamentais, como também pelo fundamento axiológico enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e por apresentar uma estrutura comum a todos os direitos fundamentais, de primeira, segunda ou terceira geração, isto é, combina uma vertente negativa, correspondente a uma esfera protegida de agressões estaduais (como já foi supra analisado), impedindo o Estado de agir, se essa acção puser em causa o ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, com uma vertente positiva, que obriga à intervenção dos poderes públicos de modo a permitir a realização plena e efectiva de tais posições e que se traduz em concretas actividades de promoção de um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado ou de controlo de acções capazes de o degradar.
 Nesta lógica, MARIA DA GLÓRIA GARCIA e GONÇALO MATIAS apontam para a existência de uma nova categoria de direitos humanos, onde o direito ao ambiente se insere - direitos/deveres ou direitos circulares. Assim, o direito fundamental ao ambiente não seria um puro direito perante o Estado, mas, outrossim, um direito que “co-envolve o dever de todos contribuírem para o que do Estado solicitam, isto é, em concreto a defesa do ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, o que abre espaço para a dimensão auto-reflexiva do direito”[6].

        Assim sendo, defende PEREIRA DA SILVA, ao direito ao ambiente, será de aplicar o regime jurídico dos direitos, liberdades e garantias, na medida da sua dimensão negativa, e o regime dos direitos económicos, sociais e culturais, na medida da sua dimensão positiva.
 O direito ao ambiente é o direito que assiste aos cidadãos de ter um espaço de realização pessoal do ponto de vista de saúde e bem-estar físico e moral. Pode ser visto de uma perspectiva extensiva, caso em que o ambiente aparece como um conglomerado dos elementos naturais, culturais, económicos ou sócias que influenciam o homem; ou num sentido restrito onde só contam os elementos naturais, traduzindo se na ideia de Natureza.

Mas afinal, haverá ou não um Direito Fundamental ao Ambiente?
Os direitos fundamentais, prima facie, são definidos como direitos inerentes à própria noção de pessoa, como direitos básicos da pessoa.
Nem a CRP, nem a lei ordinária dão uma definição geral do que é um direito fundamental e, muito menos, o que se considera o seu conteúdo essencial. Essa tem sido tarefa da doutrina e da jurisprudência.
A delimitação do «conteúdo essencial» dos direitos fundamentais só se coloca, porque estes podem ser objecto de restrições. Na verdade, não existem direitos fundamentais absolutos, como também não o será o Direito ao Ambiente. No entanto, as restrições dos direitos fundamentais têm sempre um limite, já que não poderá ser ofendido aquele mínimo para além do qual o direito fundamental deixa de o ser, fica esvaziado enquanto tal. Esse mínimo intocável, o núcleo essencial dos direitos fundamentais, prende-se com o facto de os direitos fundamentais assentarem numa compreensão predominantemente antropocêntrica, fundada na autonomia e dignidade da pessoa humana, do homem concreto como ser livre, que é o que, grosso modo, justifica a consagração de um direito como fundamental.
A defesa do ambiente pode justificar restrições a outros direitos constitucionalmente protegidos, por exemplo, a liberdade de construção (direito de propriedade) que se encontra muitas das vezes condicionada a medidas de planificação de protecção do ambiente.

      Os direitos fundamentais são, assim, antes de mais, direitos subjectivos  por atribuírem posições jurídicas subjectivas a todos os indivíduos.
Mas a base antropológica dos direitos fundamentais não é apenas o homem per si, mas também o homem enquanto ser social, pelo que tais direitos devem também ser pensados do ponto de vista da comunidade, como valores ou fins a prosseguir, assumindo então a natureza de direitos-deveres (que já foi supra mencionada), o que confere aos direitos fundamentais também uma dimensão objectiva.
Porquanto, a protecção dos direitos fundamentais visa a prossecução de valores ligados à dignidade da pessoa humana como ser livre e é essa ideia que confere unidade material aos direitos fundamentais.

        Os chamados direitos fundamentais de “terceira geração” (onde se integra o ambiente) vieram reclamar prestações graduais. Isto é, o Direito do Ambiente consagra uma lógica de abstenção mas também uma lógica prestadora. Implica um nível de participação dos particulares para a defesa de bens públicos, e não apenas o intervencionismo estadual para tutelar as necessidades ambientais, sendo daí que advém o carácter subjectivo do direito em análise.
Ademais a própria Constituição Portuguesa ao enquadrar o Direito ao Ambiente na sua Parte I referente aos direitos e deveres fundamentais, sob a epígrafe Ambiente e qualidade de vida, que consta do art. 66º, parece apontar para a sua fundamentalidade.
Maioritariamente a doutrina e jurisprudência portuguesa têm adoptado o direito ao ambiente como fundamental. Neste sentido, veja-se o Acórdão do STJ de 2 de Julho de 1996, publicado na Revista da Ordem dos Advogados e anotado por Menezes Cordeiro nos seguintes termos: “ (…) não pode entender-se o direito à vida sem uma componente essencial que é a do direito à qualidade de vida. Esta componente é tão exacta quanto a liberdade ou a segurança, porque senão, repare – se neste pormenor tão simples quanto incontroverso: se as condições reais levarem à desarticulação dos meios ambientais que permitam, efectivamente, viver, o direito à vida não passará de uma abstracção teórica de curto prazo”.

      Assim, importa indagarmos das possibilidades de actuação quando se verifique uma infracção ambiental, ou também urbanística, a fim de darmos corpo a este direito fundamental. Desde logo consideremos como infracção qualquer actuação (por acção ou omissão), culposa ou não, susceptível de afectar o direito fundamental a um ambiente humano, sadio e ecologicamente equilibrado. Entre os vários instrumentos de protecção ambiental encontra-se por exemplo o direito de queixa ao Provedor de Justiça (art. 23º, CRP) o direito de petição e o direito de acção popular (art. 52º, CRP).
Saliente-se que é em sede administrativa que se torna mais eficiente a defesa dos bens ambientais, dado ser extremamente difícil uma actuação preventiva em termos de instância judicial.

     O direito fundamental a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado caracteriza-se por não ser um genuíno direito perante o Estado, co-envolve o dever de todos contribuírem para a defesa do ambiente.

Inês Vieira
nº 19640


[1] MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, IV, 3ª ed., Coimbra, 2000, p. 534.
[2] MIRANDA, Jorge e MEDEIROS, Rui, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2010, Coimbra Editora,  anotação ao art. 66º.
[3] SILVA, Vasco Pereira Da, Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente, 2002, Almedina, p. 85.
[4] MEDEIROS, Rui, “O ambiente na Constituição”, in revista de Direito e Estudos Sociais, 1993.
[5] SOUSA, Marcelo Rebelo de e ALEXANDRINO, José de Melo, Constituição da República Portuguesa Comentada, Edições Lex, Lisboa, 2000.
[6] MIRANDA, Jorge e MEDEIROS, Rui, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2010, Coimbra Editora,  anotação ao art. 66º.

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