Direito do Ambiente é,
Fundamentalmente, um Interesse Difuso?
Todos os Direitos Fundamentais
radicam na ideia subjacente da Dignidade da Pessoa Humana. Todavia, existem
diversas concepções, sistemas e atitudes relativas aos Direitos Fundamentais
que nos importa saber e ainda diversos conceitos que relevam ser confrontados
para uma melhor reflecção sobre o problema em análise, isto é, se será o
direito do ambiente um direito fundamental?
Antes de introduzirmos a
discussão, torna-se veemente que se deixe clara a definição de Direitos
Fundamentais que o Professor Jorge Miranda adopta. Desta feita, o Professor
distingue entre sentido formal e sentido material. Assim sendo, direitos
fundamentais em sentido formal serão todos aqueles que estão presentes na Constituição
formal, ou seja, no texto constitucional. Por sua vez, direitos fundamentais em
sentido material serão os direitos fundamentais resultantes da concepção de
Constituição dominante, da ideia de Direito, do sentimento jurídico colectivo.
Podemos então inferir que todos os direitos fundamentais em sentido formal são
também direitos fundamentais em sentido material, no entanto há direitos
fundamentais em sentido material que vão para além dos existentes em sentido
formal.
Concepções (latu sensu) dos
direitos fundamentais
Concepções (strictu sensu)
dos direitos fundamentais
As igrejas cristãs perante os direitos do homem:
Doutrina Católica reconhece a
consciência de liberdade e dignidade dos homens do nosso tempo, sublinhando que
todas as pessoas detêm a mesma dignidade e essas se devem sobrepor às
estruturas. Este ponto de vista defende uma conexão entre direito e deveres e
entre justiça e caridade, mantendo sempre uma opção preferencial pelos pobres.
Defendem não só uma relação entre libertação humana e liberdade cristã como
ainda uma relação necessária entre os princípios da solidariedade e da
subsidiariedade. Sustentando a função social da propriedade apontam a
necessária indissociabilidade entre o desenvolvimento integral de cada homem e
o desenvolvimento solidário de toda a humanidade;
Doutrina Ortodoxa não trouxe grande
contributo no que à adesão aos princípios da liberdade política e até da
liberdade religiosa dizem respeito;
Doutrina Protestante teve uma
importante participação ao longo do século XVIII na defesa dos direitos do
homem e na sua formação, apoiada numa ética muito mais individualista que a
católica.
Outras religiões:
Islamismo proclama a dignidade inerente a todos os homens e a
unidade entre eles, reforçada pela relação com Deus. Acredita na dimensão
social da vida humana demonstrando uma particular sensibilidade perante o
direito à honra, à desobediência à lei injusta e à igualdade económica. Não
separa o temporal do espiritual, o jurídico do moral, a comunidade política da
comunidade religiosa, os direitos do homem da lei divina. Apesar de respeitar
as minorias étnicas e religiosas, não confere os mesmos direitos aos homens e
às mulheres nem a muçulmanos e não muçulmanos, não admitindo, paralelamente, a
liberdade fora do contexto da comunidade religiosa e política.
Atitudes filosóficas subjacentes às concepções de direitos do homem
Jusnaturalistas - os direitos do homem
como imperativos do Direito natural, anteriores e superiores à vontade do
Estado;
V.S.
Positivistas - os direitos do homem
como faculdades outorgadas e reguladas pela lei positiva;
Idealistas – os direitos do homem como
ideia que se projecta sobre o processo histórico;
V.S.
Realistas – os direitos do homem como
expressão da experiência ou das lutas políticas, económicas e sociais;
Objectivistas – os direitos do homem
como realidades em si ou como valores objectivos ou decorrência de valores;
V.S.
Subjectivistas – os direitos do homem
como faculdades da vontade humana ou como manifestações de autonomia;
Contratualistas – os direitos do homem
como resultado do contrato social, como a contrapartida para o homem da sua
integração na sociedade;
V.S.
Institucionalistas – os direitos do
homem como instituições inerentes à vida comunitária.
Sistemas teórico-jurídicos de direitos fundamentais:
Teoria liberal – tende a reconduzir os
direitos fundamentais a direitos de autonomia e de defesa, individuais e
fortemente subjectivados;
Teoria institucionalista – tende a
inseri-los em instituições, em enquadramentos objectivos e funcionais;
Teoria conservadora – tende a
subordinar a liberdade individual à autoridade e à tradição a partir de uma
visão pessimista da natureza humana e da orgânica da sociedade;
Teoria dos valores – tende a
identificá-los com valores;
Teoria democrática - tende a identificá-los
com direitos de participação;
Teoria social – tende a afirmar a
dimensão social e positiva de todos os direitos;
Teoria socialista marxista – tende a
realçar a dimensão económica e concreta de tosos os direitos.
Feita esta introdução conceptual,
apresentemos alguns conceitos
confrontando explicita ou implicitamente com a definição de direitos
fundamentais.
Direitos subjectivos públicos: aqueles
que são atribuídos por normas de Direito Público. Abrange não só as situações
jurídicas activas das pessoas frente ao Estado como situações funcionais
inerentes à titularidade de cargos públicos, nomeadamente situações que cabem
no Direito Administrativo, no Tributário ou no Processual e inclui direitos de
entidades públicas, enquanto sujeitos de relações jurídico-administrativas, de
relações jurídico-financeiras e de outras relações de Direito Público interno;
Direitos de personalidade: são posições
jurídicas fundamentais do homem que ele tem pelo simples facto de nascer e
viver, aspectos imediatos da exigência de integração do homem, condições
essenciais ao seu ser. Revelam o conteúdo necessário da personalidade, são
emanações da personalidade humana em si, direitos de exigir de outrem o
respeito da própria personalidade. Têm por objecto modos de ser físicos e
morais da pessoa ou bens da personalidade física, moral e jurídica. Os direitos
de personalidade adquirem imediata relevância constitucional e existem áreas de
coincidência entre estes e os direitos fundamentais, como é exemplo o artigo 24
da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP);
Situações funcionais: aquelas, activas
ou passivas, dos titulares dos órgãos e, porventura, de certos agentes do
Estado e de quaisquer entidades públicas enquanto tais (veja-se os artigos
117/nº2 e 164/alínea m) da CRP). Podemos estar perante verdadeiros direitos
subjectivos pessoais e patrimoniais, deveres, restrições, direitos funcionais,
regalias, garantias, específicas formas de protecção penal e específicas
situações de responsabilidade. As situações funcionais são situações jurídicas
de membro do Estado-poder, são consequência da prossecução do interesse público
e têm, em princípio, um carácter obrigatório. Contrastando com os direitos
fundamentais que se caracterizam como situações jurídicas de membros do
Estado-comunidade, existindo apenas onde haja um interesse das pessoas e têm um
carácter de livre exercício;
Interesses difusos: manifestação da existência
ou do alargamento de necessidades colectivas individualmente sentidas, traduzindo
um dos entrosamentos específicos de Estado e sociedade que implica formas
complexas de relacionamento entre as pessoas e os grupos no âmbito da sociedade
política que só podem ser apreendidos numa nova perspectiva de cultura cívica e
jurídica (exemplo será a valorização do património cultural presente no artigo
9 alínea e) da CRP);
Garantias institucionais: normas que
confinam um sentido organizatório objectivo, independentemente de uma
atribuição ou de uma actividade pessoal. Pelo contrário, se a norma estabelece
uma faculdade de agir ou de exigir em favor de pessoas ou de grupos, se coloca
na respectiva esfera jurídica uma situação activa que uma pessoa ou grupo possa
exercer por si e invocar directamente perante outras entidades, estamos perante
um direito fundamental;
Deveres fundamentais: situações
jurídicas de necessidade ou de adstrição constitucionalmente estabelecidas,
impostas às pessoas frente ao poder político ou, por inferência de direitos ou
interesses difusos, a certas pessoas perante outras. Tal como nos direitos
fundamentais, estes deveres pressupõem uma separação entre poder e comunidade e
uma relação directa e imediata entre cada pessoa e o poder político.
Para o Professor Vasco Pereira da Silva, os direitos fundamentais
apresentam-se com uma “dupla natureza”. Por um lado, são direitos subjectivos
na medida em que detêm uma dimensão negativa, isto é, direitos de defesa contra
agressões de entidades públicas e privadas na esfera individual
constitucionalmente protegida. Por outro, caracterizam-se como estruturas
objectivas da comunidade, pois compreendem também uma dimensão positiva,
enquanto conjunto de valores e princípios conformadores de toda a ordem
jurídica que estabelecem deveres de actuação e tarefas de concretização para os
poderes públicos. Para “encaixar” o Direito ao Ambiente como direito
fundamental, para além de sublinhar a clara opção do legislador constituinte na
consagração do direito no artigo 66 reforçado pelo artigo 9 alíneas d) e e), o
Professor sustenta-se numa fonte histórica de fundamento para a existência de
Direitos Fundamentais. Ou seja, radicando os direitos fundamentais no princípio
axiológico da dignidade da pessoa humana, é necessário acrescentar a sua base
histórica, a sua concretização em distintos momentos e sociedades humanas. Para
este Professor “se o fundamento axiológico impõe uma busca incessante dos
melhores caminhos para a realização de um objectivo ideal, a sua dimensão
histórica mostra como a realização da dignidade da pessoa humana, em cada
momento histórico e em cada sociedade, coloca novos desafios e exige novas
respostas ao Direito, obrigando à transformação e ao alargamento dos direitos
fundamentais.” Assim, afirma o Professor, se justifica a utilização do termo
“geração” de direitos fundamentais, apontando, desta maneira, a existência de
três gerações sendo que o Direito ao Ambiente apresentar-se-ia na Terceira
Geração dos Direitos Fundamentais.
Para refutar a ideia de que o
Direito ao Ambiente não será um direito subjectivo devido á impossibilidade de
apropriação individual mas antes um interesse difuso ou talvez um interesse
legítimo, o Professor aponta a definição de direito subjectivo como uma posição
de vantagem tal como as outras duas situações, sendo que não faz sentido
proceder a uma distinção entre direitos de primeira, segunda ou de terceira
categoria. Dever-se-á evitar a distinção, preferindo então um tratamento
unificado dessas posições substantivas de vantagem no “conceito-quadro” de
direito subjectivo. Conclui o Professor que o Direito ao Ambiente será, tal
como os direitos fundamentais em geral, um direito subjectivo público. Quanto
às consequências de regime em função da configuração do Direito ao Ambiente
como direito fundamental, o Professor levantando o problema da dualidade de
regimes jurídicos respeitantes aos direitos, liberdades e garantias e aos
direitos económicos, sociais e culturais e o facto de não haver “na
Constituição portuguesa (como na generalidade das Constituições) um regime
sistemático explícito dos direitos económicos, sociais e culturais simétrico do
regime dos direitos, liberdades e garantias, quer no plano substantivo quer nos
demais planos” (Professor Jorge Miranda), conclui que a ponte de unificação de
regime jurídico para os direitos fundamentais se encontra no artigo 17 da CRP.
Assim sendo, o artigo apontado pelo Professor Vasco Pereira da Silva, faz
aplicar o regime jurídico dos direitos, liberdades e garantias também aos
direitos económicos, sociais e culturais. Desta feita, e apoiado numa afirmação
do Professor Jorge Miranda “embora
contemplado ex professo no título III
da parte I da Constituição, o direito ao ambiente não suscita só, nem talvez
primordialmente, direitos económicos, sociais e culturais. Conduz outrossim a
direitos, liberdades e garantias ou a direitos de natureza análoga”, o
Professor Vasco Pereira da Silva acaba por inferir que ao direito ao ambiente é
de aplicar o regime jurídico dos direitos, liberdades e garantias, na medida da
sua dimensão negativa, e o regime jurídico dos direitos económicos, sociais e
culturais na medida da sua dimensão positiva. Fá-lo da mesma forma como define o Professor Jorge Miranda ao
considerar o direito ao ambiente como um direito de natureza complexa com uma
estrutura dual que fica sujeito “ora ao regime dos direitos, liberdades e
garantias (artigo 17 da CRP)” por ser um direito de natureza análoga, “ora ao
dos direitos económicos, sociais e culturais”. Ficará sujeito ao regime dos
direitos, liberdade e garantias quando se mostre como sendo um direito de
autonomia ou de defesa das pessoas perante os poderes públicos ou sociais que
as condicionam e envolvam. Nesta hipótese, o direito ao ambiente tem por
“contrapartida o respeito, a abstenção, o non facere”, e por objecto a
“conservação do ambiente”, consistindo isto na “pretensão de cada pessoa a não
ter afectado hoje, já o ambiente em que vive e em, para tanto, obter os
indispensáveis meios de garantia”. Por sua vez, ficará sujeito ao regime dos
direitos económicos, sociais e culturais uma vez que é um “direito a prestações
positivas do Estado e da sociedade, um direito a que seja criado um ambiente de
vida humana, sadio e ecologicamente equilibrado (artigo 66/1 da CRP)”.
Com todo o respeito por ambos os Professores mencionados e com a
devida humildade intelectual com que se deve pautar a minha opinião como
jurista “embrionário”, custa-me a crer que o Direito ao Ambiente se possa
configurar como um Direito Fundamental. O argumento histórico, de fundamento
para existência de novos direitos fundamentais, apontado pelo Professor Vasco
Pereira da Silva levaria, a meu ver, a médio-longo prazo, a um alargamento
excessivo da categoria que se denomina como de Direitos Fundamentais. Se
actualmente podemos apontar diferenças entre diversos conceitos com fronteira
pouco nítida com os Direitos Fundamentais e que concedemos e admitimos a existência
de casos de coincidência como são exemplo os direitos de personalidade, não
podemos agora incluir na “caixa” dos Direitos Fundamentais todas as situações
que se apresentem minimamente conexas. Muitas são as posições jurídicas que
alimentam o princípio axiológico da dignidade da pessoa humana que não podem
nem devem ser configuradas como direitos fundamentais, mas sim como direitos
instrumentais dos verdadeiros e únicos direitos fundamentais, tendo assim um
papel de auxílio na efectivação desse princípio axiológico subjacente. A única
maneira de fazer valer o Direito ao Ambiente como Direito Fundamental será por
via de uma argumentação que estenda essa categoria de Direitos a direitos que
alimentem aqueles, isto é, definir direito ao ambiente como direito fundamental
tendo por base a sua influência noutros direitos fundamentais, como são o caso
do direito à integridade física ou mesmo o direito à vida. Ou seja, como tive
oportunidade de sublinhar anteriormente, tornar o direito ao ambiente um
direito fundamental na medida em que uma deficiente tutela deste direito porá
em risco os verdadeiros direitos fundamentais, ou melhor dizendo, os direitos
fundamentais de primeira e segunda gerações. O legislador apontou uma vertente
objectiva do direito ao ambiente patente no artigo 9 alíneas d) e e) como
também consagrou a vertente subjectiva na medida em que o definiu como direito
fundamental no artigo 66, no entanto essa configuração ficou claramente
atenuada a partir do momento em que a regra do artigo 17 da CRP não faz
aplicar, na minha opinião, o regime dos direitos, liberdades e garantias ao
Título III onde se encontra o artigo 66. Assim sendo, é clara a intenção do
legislador na hierarquização dos direitos que confinam uma protecção do
princípio da dignidade da pessoa humana. Na minha opinião, as alíneas do artigo
9 apontam uma tarefa estadual que se impôs pelo desenvolvimento dos problemas
modernos (aqui sim, a preponderância do argumento histórico) e o artigo 66,
erroneamente colocado no capítulo da Constituição referente aos direitos e
deveres fundamentais, apenas quererá reforçar a importância da tarefa apontada
pelo artigo 9, enunciando alguns parâmetros de actuação. Se é certo que onde o
legislador consagrou a menos, não deve o intérprete e o aplicador ler a mais,
pelo contrário podemos apontar erros de sistematização ou de configuração,
situações acidentais de inclusão em categorias a que não pertencem, isto é,
podemos apontar casos em que o legislador disse mais do que era a sua intenção.
Este é, do meu ponto de vista, um desses casos. Paralelamente, o Professor
Vasco Pereira da Silva aquando da crítica da impossibilidade de apropriação
individual do direito ao ambiente, afirma que o direito subjectivo e
fundamental ao ambiente não se pauta por uma apropriação individual imediata
tal como muitos outros direitos fundamentais existentes (ex: direito ao voto).
Pauta-se sim por ser uma fonte de relações jurídicas relativas ao direito em
sim mesmo. Para este Professor, não se trata de uma excepção na medida em que,
por exemplo no direito ao voto, será impossível a qualquer pessoa exercê-lo sem
mecanismos instrumentais de auxílio. Tenho para mim, que não se trata de
situações comparáveis no sentido em que por um lado temos um bem jurídico claro
e por outro temos um bem jurídico dificilmente palpável, pouco definido e muito
menos reconduzível a apenas um indivíduo. Se o argumento do Professor Vasco
Pereira procedesse, podíamos dizer que quase nenhum direito seria exercível sem
auxílios externos de que teor fosse. “Pegando” agora na definição do Professor
Menezes Cordeiro para direito subjectivo, ou seja, permissão normativa
específica de aproveitamento de um bem jurídico, cumpre-nos tentar coincidir
esta definição com o direito ao ambiente. Sim, é impossível. Não há nenhuma
permissão de aproveitamento, ou melhor, haver há como é óbvio mas dificilmente
configurável na vida real a não ser que sejamos radicais ao ponto de utilizar a
expressão “o ar é de todos”. Sim, pois se o Ar é uma das componentes naturais
do direito ao ambiente (artigo 8 da Lei de Bases do Ambiente), podemos mesmo
reconduzir esta concepção como direito fundamental à expressão supracitada.
Concluindo, a meu ver, independentemente de uma melhor, maior ou mais profunda
argumentação, será sempre difícil para mim sustentar, apoiar ou defender o
direito ao ambiente como direito fundamental. Na minha perspectiva, será mais
um exemplo de interesse difuso a par da segunda parte da alínea e) do artigo 9
(valorização cultural), podendo sim abrir-se a discussão da possibilidade de
recurso à acção popular prevista no artigo 52/nº3/ alínea a). Será então
chamado de “interesse que é de todos mas que não é de ninguém.”
Bibliografia:
Miranda, Jorge.
Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Direitos Fundamentais;
Pereira da Silva,
Vasco. Verde Cor de Direito, Lições de Direito do Ambiente;
JPM, 19685
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